A dor desaparecia, David desceu as escadas com alguma dificuldade e olhou pela janela da sala de estar para descobrir de onde viera o som do tiro. Sorriu.
Alexandre Kerenkov aproximava-se da casa, o revólter Colt com o qual anunciara a sua chegada brilhando-lhe na mão. As botas enlameadas roçavam contra a terra do caminho e o sobretudo comprido pingava para o chão. O cabelo claro caía-lhe sobre a testa em farripas molhadas pelas quais passou a mão de dedos compridos. Os seus olhos esverdeados demonstravam cansaço da longa viagem que tivera de fazer para chegar aos Açores, ali, à ilha de S. Miguel. Alexandre, apesar de ter apelido russo, era bem português. A mãe conhecera o pai quando fora à Rússia visitar um tio e voltaram ambos para Portugal. As feições russas estavam bem marcadas na face de Alexandre, qualquer um o confundiria com o pai.
David abriu a porta das traseiras para o recém-chegado entrar e deixou-se estar encostado à ombreira. Alexandre aproximou-se dele com um sorriso curioso nos lábios. Então, disse:
- David, há quanto tempo! Estás a ficar um homem!
O rapaz riu-se e, na sua voz meia agridoce, convidou o visitante a entrar. A cozinha revestia-se de azulejos azuis e brancos de temas florais. Os armários de madeira tinham sido pintados de branco há pouco tempo pois, segundo Isabel, ficava melhor assim. Por isso, Simão Pedro passara uma manhã inteira a lixar e uma tarde a pintar para os armários ficarem tão bonitos.
Kerenkov pousou a mochila que trazia a ombro no chão, encostada à parede, perto da porta da sala.
- Queres tomar alguma coisa, Alex?
- Por acaso estou esfomeado e cheio de sede, mas prefiro esperar pelo jantar.
- Isso é capaz de demorar. Há café e pão se quiseres.
- Um café sabia bem agora, sim.
- Eu vou fazer, então.
- Obrigado. Já sabes como gosto dele, bem quente e...
- Sem açúcar. Sim, ainda me lembro.
Pegando na cafeteira, encheu-a de água da torneira e colocou-a ao lume, no fogão. Nesse momento, Isabel irrompeu na cozinha, os seus olhos brilhando. No entanto, quando estava pronta a saltar para o pescoço de Alexandre, ele falou:
- Agora não, minha querida. Estou sujo da viagem. Talvez mais logo, depois de ter tomado banho e mudado de roupa.
- Tudo bem... - respondeu ela, numa voz sumida, enquanto se retirava para a sala e se estirava no sofá.
A cafeteira assobiou e David deitou para dentro dela umas quantas colheres de café moído.
- Daqui a uns minutos está pronto.
O visitante olhou pela janelinha das traseiras e viu Simão Pedro a chegar, ainda com as botas de cavalgar enlameadas calçadas. Ao entrar na cozinha, não agiu como Isabel, pelo contrário. Apenas cumprimentou David com um aceno e deu umas palmadinhas nas costas de Kerenkov, enquanto dizia:
- Bem-vindo, Alex.
Depois desapareceu nas escadas que davam acesso ao andar superior.
- Anda esquisito, o Simão.
- Pois, já há algum tempo, mas deixa lá, passa-lhe.
Veio a voz de Isabel da sala.
- David, já encontrei aquele livro que andavas à procura.
- Ai sim? Onde estava?
- Debaixo do sofá, para variar.
Alexandre virou-se e viu a cafeteira a fumegar. Esticou o braço para agarrar uma caneca e entornou o líquido escuro a escaldar para dentro dela.
- Perfeito. - disse.