Pousaste a aliança em cima da mesa da cozinha e sentaste-te. Eu perguntei como ela estava, mas tu não quiseste falar sobre o assunto. Apoiaste os cotovelos no tampo da mesa e disseste que o tempo nem sempre era nosso. Eu sabia que tinhas razão; o tempo nunca foi nosso, era sempre dos outros. Eu via-o, a entrar dos relógios, a dançar em volta dos ponteiros, a transformar-se em números e em gotas de consciência. Mas nunca era nosso.
Suspiraste, da maneira que apenas suspiras quando estás em minha casa com a aliança pousada em cima da mesa da cozinha. Tu gostavas muito dela, porque ela tinha olhos verdes e eu não, porque ela era mais velha e sabia coisas que eu nunca aprendera. Tu sonhavas com ela e não comigo. No entanto, a aliança estava ali, sobre a mesa, a olhar para ti e para mim com o seu olho de ar e ouro, cada vez mais fria.
Lembras-te?, disseste.
Eu lembrava-me de muita coisa, mas eu sabia a que te referias. Era a única coisa que eu guardava no sítio vivo da memória.
Sim.
Eu também.
Comigo, tu procuravas o silêncio.
Viste a minha máquina fotográfica em cima do balcão, lambeste os lábios.
Fotografa-me, pediste.
Porquê?
Quero que fiques com a minha alma, que a guardes. Ela é demasiado pesada para eu a levar comigo embora. Não sou a mesma pessoa quando volto a casa; sou a pessoa dela, a pessoa que ela tem como garantida. E essa pessoa não sou eu, é o outro que vive dentro de mim e passeia pela casa de mão dada com a minha sombra. Assim sei que só sou eu fora daquela casa, que só sou eu contigo. Há mais alma nas minhas mãos do que em todo o corpo dela; se calhar até é isso que me atrai tanto. Sempre procurei alguém a quem pudesse preencher com a minha alma e ela é assim; é dura, tem um carácter tão diferente do meu. Talvez seja por isso que gosto tanto dela. Mas quero que fiques com a minha alma.
Levantaste-te e, lentamente, desapertaste os botões da camisa. O tecido caiu no chão, inanimado e leve, como a pena de uma cegonha que acabou de ser mãe.
A minha alma está aqui.
Apontaste para o peito, macio e dourado, o mesmo peito sobre o qual eu havia dormido tantas noites sem sonhos.
Está aqui, algures. Perto do coração, à volta dele, no seu interior, a borbulhar. Algures. Procura-a; tira-a. Ainda pode nevar hoje.
Disse-te que estávamos na Primavera, que não ia nevar.
Pode nevar dentro de mim.
Ficaste reflectido na lente, com a decomposição colorida da luz do sol. Tinhas os lábios entreabertos, os ombros descaídos, os braços languidamente estendidos ao longo do corpo. Havia sombras nos teus olhos.
Agora guarda-a, que vem aí a neve. Já, não, mas ainda hoje; quando chegar a casa.
Pegaste na minha mão e seguraste-a dentro da tua.
Houve fotografias e a tua aliança em cima da mesa.