BLOG FECHADO

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Mai 10

D

uas palavras. Deixaste-me apenas um copo vazio e duas palavras escritas no canto de um jornal, como que a pedir para virar a página. Vou voltar. Sim, tu voltavas sempre, mas, desta vez, eu sabia que demoraria mais tempo. No entanto, eu não fiquei irritada por te ires embora. Fiquei irritada por não teres deixado o copo na pia, em água, como eu sempre te pedia. Arrumei a garrafa do rum atrás dos pratos que tinham sido da minha avó e disse a mim mesma que me esqueceria da sua existência.

Vou voltar. Quando voltares, eu vou ouvir os teus passos no alpendre, cansados e lentos. Vais esperar um momento; vais pensar se eu estarei em casa. Vais tocar à campainha e eu vou ficar um momento à espera, só a respirar o ar que ainda não tem o teu cheiro nem a tua presença, com as mãos no colo e os lábios cerrados. Vou pensar que a vida é curta demais. Então, abrir-te-ei a porta; e aí terás voltado.

 

E

ra a primeira manhã de Janeiro; caía uma chuva miúda e incisiva no vidro da janela, como se ela mesma fugisse do frio e da invernia. Um feixe de luz cinzenta desenhou uma linha de claridade entre as cortinas do quarto e Isabel abriu os olhos. A primeira luz matinal de Janeiro tinha chegado e, com ela, as últimas folhas brancas e mortas largavam os galhos das árvores para serem caixão dos passos vagabundos e barcos no mar de lama que flutuava sobre as pedras da calçada. Isabel levantou-se com dificuldade e procurou o caminho na penumbra. O quarto, por alguma razão, parecia-lhe mais comprido, mais atafulhado, menos seu. Abriu a porta e olhou em volta, como se estivesse à procura de um filho perdido, mas apenas viu o longo corredor, ladeado de portas estreitas, atravessado por uma corrente de ar fria e metálica que lhe regelava os tornozelos. A chuva murmurava com as janelas e elas respondiam com sombras translúcidas nas paredes. Só havia chuva; e uma formiga no último degrau das escadas. Isabel fechou a porta e sentou-se na cama, com as pernas flectidas, a observar a linha luminosa que cortava as cortinas ao meio e parecia a porta para o Céu.

Hoje, não consigo ouvir a voz das paredes.

As coisas falavam com ela, especialmente no Inverno, quando a vida se esconde e o que restam são os objectos melancólicos e inanimados à procura de calor humano. Durante o Inverno, até Henrique se escondia dela, mas mais longe, noutro leito. Um leito perfumado e quente, macio de juventude, repleto de palavras cálidas e silenciosas banhadas em ouro e encarnado. Palavras que Isabel não conhecia, mas que sabia que existiam. Deitou o rosto na almofada, ainda quente, e expirou pela boca. Apoiou-se no flanco e a madeira da cama rangeu ligeiramente, como um protesto sonolento e pesaroso. Não iria voltar a adormecer, mas podia passar um momento com o único objectivo de não pensar em nada a não ser nos pequenos salpicos de chuva que fustigavam a janela.

 

 

 

(Fora da história «Atrás da Porta». Apenas para tirar o pó ao blog.)

publicado por Katerina K. às 14:00

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