BLOG FECHADO

04
Mai 10

Maureen Ward envolveu lentamente a mão na longa cortina de veludo vermelho e espreitou pela fresta de claridade que se afigurava no mar de tecido escarlate. A estrada de acesso à casa mantinha-se deserta, coberta pela sombra quente dos carvalhos, estendendo-se até desaparecer nas bocas do nada. A imobilidade das coisas inquietava-a. Estava tudo demasiado silencioso; àquela hora, já as rodas do Porsche 916 de Camryn deviam estar a levantar poeira nas imediações da casa. No entanto, a única coisa que se mexia era Wilson, o pequeno pisco-de-peito-ruivo que saltitava no poleiro da gaiola branca ao canto da sala. Piou timidamente.

- Eu sei, Wilson. – disse Maureen, em voz baixa – Concordo que eles já cá deviam estar há bastante tempo.

Com as mãos pálidas, alisou a saia do vestido negro, enterrando os dedos nas dobras do pesado tecido. Poucas vezes na vida tivera Maureen de esperar por o que quer que fosse. Fora educada pelas severas regras da pontualidade inglesa, habituada a respeitar e a que respeitassem os horários impostos. Olhou nervosamente para o relógio – já passavam dez minutos da hora combinada.

Maureen Ward era uma filha da civilização. Nascera em Nova Iorque, mas fora criada pela avó inglesa que só saía de casa para ir comprar ao Domingo, no quiosque do quarteirão, o The Observer, o qual era semanalmente encomendado apenas para ela. Por alguma razão, desenvolvera um caso ligeiro de aletrorofobia – um medo anormal e irracional de galinhas – e uma certa aversão a pessoas. No entanto, a idade adulta trouxera-lhe lucidez e, apesar de manter a sua aletrorofobia, aprendera a suportar a sociedade. De qualquer forma, insistia em manter um certo distanciamento ao resto do mundo e isso, mesmo não intencionalmente, trouxera certos benefícios, tendo em conta aquilo que sabia, as coisas que vira e tudo em que acreditava. Aquela casa, entre os carvalhos, era o seu refúgio, o local onde partilhava, com a diminuta «comunidade» a que pertencia, as suas experiências. E quando a sua «comunidade» se atrasava daquela maneira, Maureen não reagia de forma graciosa.

Passando em frente ao espelho, dedicou um minuto a verificar a perfeição do penteado. Depois, acomodou-se no alto cadeirão de braços disposto de costas para a janela e acariciou o grosso volume de Guerra e Paz pousado sobre a mesinha. Mal tinha aberto o livro e tido tempo para se deliciar com o cheiro de papel antigo quando o deslizar característico das rodas do carro de Camryn lhe chegou ousadamente aos ouvidos.

Finalmente, pensou.

Abriu a porta a tempo de ver a densa nuvem de poeira assentar, mostrando o brilho intenso do Porsche 916, refulgindo através da sua macia e estaladiça camada de tinta azul. A figura de Camryn, a qual parecia ter aparecido de forma mágica entre a poeira, apenas se moveu para tirar o cigarro de entre os lábios e fazer os óculos de sol redondos deslizar pela cana do nariz. Marcus Donner, na sua eterna e, ainda que atraente, desajeitada maneira de se mover, abriu a porta do carro e saiu, fechando os olhos para o pó não o incomodar.

Maureen permitiu-se a um momento de observação. Camryn Sanders era, sem dúvida, das pessoas mais fascinantes que alguma vez conhecera. Os lustrosos cabelos negros, os olhos azuis e a pele morena faziam com que se destacasse no meio da multidão. No entanto, os belos traços físicos eram apenas um prenúncio da sua excêntrica personalidade. Era directa, forte como um homem, determinada a acabar tudo aquilo que pudesse ter um fim. Reparou no pequeno sorriso que se lhe formava por baixo da sombra circular dos óculos.

- Olá, Maureen.

- Finalmente chegaram. Vocês sabem que se há coisa que odeio é esperar. Porque é que me torturam assim?

Sem uma resposta, Camryn envolveu os ombros da mulher com o braço e beijou-a no rosto.

- Culpa minha. – disse Marcus, baixando a cabeça – Fiquei demasiado tempo na Casa.

Maureen assentiu.

- Calculei. Entremos.

Camryn tirou o casaco e atirou-o para cima do ombro, pendurando os óculos no decote da camisola. Entrou como se a casa fosse sua, sem parar para falar.

- Ele já chegou?

Maureen ajustou a gola do vestido ao pescoço e suspirou.

- Sim. Está lá em cima, no quarto, a dormir.

A outra emitiu um som de assentimento.

- Sempre o mesmo.

Marcus entrou no seu encalço e fechou a porta atrás de si. O batente em forma de leão ressaltou na madeira duas vezes até se quedar de novo imóvel na sua majestade.

Por um minuto, manteve-se o silêncio. Depois, um restolhar de folhas e estalar de madeira ressoaram. Na escuridão do lusco-fusco, entre dois troncos grossos de carvalho, brilharam dois olhos negros, imóveis, cruéis, cheios de morte. Dois olhos que furaram o ar e se fixaram na janela coberta de cortinas escarlates de veludo, as quais deixaram entrever a figura delgada de Camryn Sanders. Dois olhos que sorriram.

publicado por Katerina K. às 22:06

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