«Leni já não conhecia a pessoa que dormia na sua cama. Havia cordas entre eles, e as estradas morriam mais cedo nas calçadas secas e polvilhadas pela areia rasteira que os pássaros traziam nas asas.»
«Leni já não conhecia a pessoa que dormia na sua cama. Havia cordas entre eles, e as estradas morriam mais cedo nas calçadas secas e polvilhadas pela areia rasteira que os pássaros traziam nas asas.»
A primeira flor de cerejeira abriu-se na sua graciosidade cor-de-rosa, deixando as cinco pétalas divergirem elegantemente da madeira verde até tocarem no ramo escuro da árvore, revelando um odor limpo e suave a uma infância que havia pertencido a alguém. A casa junto ao lago, porém, manteve-se indiferente à real chegada da Primavera, conservando o aspecto rústico e, no entanto, magistral que emanava da escuridão das suas paredes. A sua figura fantasmagórica reflectia-se na superfície límpida e metálica da água, a qual lambia preguiçosamente a areia grossa e granítica que antecedia o denso matagal. Um pequeno barco de madeira embatia suavemente com a ondulação contra os suportes do porto improvisado a oitenta metros da habitação. Na dormência madrigal, tudo parecia abandonado e cinzento, à excepção da primeira flor de cerejeira, que impunha timidamente a sua cor contra a frieza da restante vegetação. No entanto, quando dois grossos raios de luz furaram o ar adormecido e percorreram solo e água à velocidade melíflua de quem não tem pressa, todo o vale pareceu ganhar vida com um brilho viçoso e verde. Na camada jovem de erva húmida do orvalho, refulgiram pequenas flores brancas e amarelas imóveis na imensidão primaveril.
Os passos decididos de Leni furaram o caminho que se alongava na orla da floresta, sobre a areia malhada e ainda húmida do avanço da água lacustre. O som arrastado dos seus pés rasou o silêncio e fez dele parte do passado, um passado recente e doce marcado pela deliciosa humidade matinal.
(Excerto do meu novo trabalho, A Casa do Lago.)
Pousaste a aliança em cima da mesa da cozinha e sentaste-te. Eu perguntei como ela estava, mas tu não quiseste falar sobre o assunto. Apoiaste os cotovelos no tampo da mesa e disseste que o tempo nem sempre era nosso. Eu sabia que tinhas razão; o tempo nunca foi nosso, era sempre dos outros. Eu via-o, a entrar dos relógios, a dançar em volta dos ponteiros, a transformar-se em números e em gotas de consciência. Mas nunca era nosso.
Suspiraste, da maneira que apenas suspiras quando estás em minha casa com a aliança pousada em cima da mesa da cozinha. Tu gostavas muito dela, porque ela tinha olhos verdes e eu não, porque ela era mais velha e sabia coisas que eu nunca aprendera. Tu sonhavas com ela e não comigo. No entanto, a aliança estava ali, sobre a mesa, a olhar para ti e para mim com o seu olho de ar e ouro, cada vez mais fria.
Lembras-te?, disseste.
Eu lembrava-me de muita coisa, mas eu sabia a que te referias. Era a única coisa que eu guardava no sítio vivo da memória.
Sim.
Eu também.
Comigo, tu procuravas o silêncio.
Viste a minha máquina fotográfica em cima do balcão, lambeste os lábios.
Fotografa-me, pediste.
Porquê?
Quero que fiques com a minha alma, que a guardes. Ela é demasiado pesada para eu a levar comigo embora. Não sou a mesma pessoa quando volto a casa; sou a pessoa dela, a pessoa que ela tem como garantida. E essa pessoa não sou eu, é o outro que vive dentro de mim e passeia pela casa de mão dada com a minha sombra. Assim sei que só sou eu fora daquela casa, que só sou eu contigo. Há mais alma nas minhas mãos do que em todo o corpo dela; se calhar até é isso que me atrai tanto. Sempre procurei alguém a quem pudesse preencher com a minha alma e ela é assim; é dura, tem um carácter tão diferente do meu. Talvez seja por isso que gosto tanto dela. Mas quero que fiques com a minha alma.
Levantaste-te e, lentamente, desapertaste os botões da camisa. O tecido caiu no chão, inanimado e leve, como a pena de uma cegonha que acabou de ser mãe.
A minha alma está aqui.
Apontaste para o peito, macio e dourado, o mesmo peito sobre o qual eu havia dormido tantas noites sem sonhos.
Está aqui, algures. Perto do coração, à volta dele, no seu interior, a borbulhar. Algures. Procura-a; tira-a. Ainda pode nevar hoje.
Disse-te que estávamos na Primavera, que não ia nevar.
Pode nevar dentro de mim.
Ficaste reflectido na lente, com a decomposição colorida da luz do sol. Tinhas os lábios entreabertos, os ombros descaídos, os braços languidamente estendidos ao longo do corpo. Havia sombras nos teus olhos.
Agora guarda-a, que vem aí a neve. Já, não, mas ainda hoje; quando chegar a casa.
Pegaste na minha mão e seguraste-a dentro da tua.
Houve fotografias e a tua aliança em cima da mesa.