BLOG FECHADO

31
Jan 10

             Através do vidro semi-espelhado da sala de interrogatórios do edifício J. Edgar Hoover, Aldous McBee observava o estranho indivíduo que, de mãos cruzadas sobre a barriga, mostrava uma expressão insólita. Sem dúvida, tratava-se de um homem com descendência latina, de rosto fino e afunilado, grandes olhos cor de avelã e pele morena. O cabelo negro despenteado escondia-lhe as estranhas feições. Ao peito, espreitando da camisa, usava um fio de ouro do qual pendia um medalhão com uma imagem religiosa. Apesar da ausência de tatuagens, Aldous percebeu que algo nele não batia certo. A sua expressão era calma demais, como se já tivesse passado por aquela situação várias vezes. E não era de estranhar.

            Aldous ouviu a porta bater atrás de si. Por cima do ombro, viu um homem alto e entroncado, vestindo um severo fato negro que lhe alongava o corpo poderoso. Uma camisa extremamente branca, que parecia até produzir a sua própria luz, servia de intermediário entre o casaco e a gravata, ambos imersos num negrume possante. O tecido engomado ascendia até à pele, tostada e lisa, que desembocava no cabelo loiro perfeitamente penteado. Cabelo loiro como feno.

            - Sawyer?! Santa Mãe de Deus, nem parecias tu. – exclamou, levando as mãos ao ar.

            Sawyer Hayden sorriu, avançando com as mãos nos bolsos e os sapatos italianos a cliquetear contra o linóleo que cobria o solo.

            - Estás assim tão surpreso? Ainda tenho os meus fatos antigos e lembro-me bastante bem dos protocolos do FBI em relação à maneira como nos apresentamos oficialmente.

            - Pois, calculo que sim…Mas já não me recordava de te ver assim.

            Sawyer não respondeu. Deleitou-se interiormente com o aspecto atarantado que Aldous não conseguia afastar do rosto. No entanto, também ele estava surpreendido consigo mesmo. Já não estava habituado à prisão que o tecido escuro dos fatos lhe oferecia, nem à extrema precisão que toda a sua figura exalava. Mas todos esses pensamentos se esfumaram da sua mente quando reparou no estranho indivíduo que se encontrava do outro lado do vidro.

            - Que pessoa extraordinária. – pronunciou, deixando o lábio inferior ligeiramente descaído.

            Aldous abriu uma pasta sobre a palma da mão esquerda, fazendo um número de folhas adejar.

            - Antonio de la Cruz, mais conhecido por Iggy.

            - Iggy. Como em iguana. Ah!, a ironia! – Sawyer atirou a cabeça para trás.

            - Sim, é verdade. E o tipo é má rês, também. Já viste isto? Podia forrar as paredes da minha sala só com o cadastro dele.

            - Calculo. Por isso é que o quero interrogar, acho que vai ser extremamente interessante.

            - Queres interrogá-lo?! – Aldous virou-se repentinamente – Não achas que estás um pouco enferrujado?

            - Não. Isto é como andar de bicicleta, nunca se esquece. – sorriu – E tenho o privilégio de fazer certas perguntas e insinuar coisas que um agente oficial do FBI nunca poderia fazer, o que é óptimo.

            - Não te estiques. – fez o «i» ressoar, tal como o pai costumava fazer.

            Com um sorriso, Sawyer ajustou o relógio Rolex no pulso e saiu pela porta da sala de controlo. Contornou a esquina e percorreu o corredor até se ver frente a uma porta metálica inscrita de Sala de Interrogatórios nº 1. Girou a maçaneta e empurrou a porta com o ombro. O cheiro esterilizado do desinfectante encheu-lhe as narinas. Não se lembrava de o odor ser tão intenso, antigamente. Fechou a porta atrás de si com um clic gentil e recostou-se no metal, cruzando os braços. O outro virou-se devagar, apoiando-se no espaldar da cadeira.

            - Boa tarde, Iggy.

            - Quem raio é você? – a voz do homem era marcada por um intenso sotaque latino.

            Sawyer sorriu.

            - Agente Especial Hayden. É um prazer.

            - O prazer é todo seu. – tentou rir-se.

            - Não brinques comigo, Iggy. Tu não queres brincar comigo.

            Sawyer puxou de uma cadeira e sentou-se, com o espaldar encostado ao peito.

            - Iggy. Iggy, Iggy, Iggy. Quem é A Rainha?

publicado por Katerina K. às 21:04

26
Jan 10

             Sawyer sentou-se no chão do quarto, juntou as pernas e cruzou os braços. Tinha tido o cuidado de fechar as janelas e baixar as luzes. No entanto, um fio branco de claridade entrava irritantemente pela janela. Ele tentou abstrair-se daquela luz indesejada. Pelo chão, havia disposto um conjunto de fotografias. De um lado, arrumara as imagens dos crimes d’A Rainha. Do outro, as imagens dos do novo ladrão. Sabia que não era ela a cometer os roubos, o estilo era demasiado diferente, se bem que analítico. O objectivo d’A Rainha sempre fora apenas furtar os diamantes; no entanto, o novo criminoso não se limitava a fazê-lo, parecia ter também um mórbido prazer em assustar de morte todos aqueles que se trespassassem no seu caminho. Os diamantes roubados eram, também, diferentes. A Rainha escolhia as pedras a dedo, sendo óbvio que tinha um profundo conhecimento sobre o tema. Não se tratava apenas de uma cleptomaníaca. Ela tinha objectivos, uma lista extensa daquilo que queria. O novo criminoso, a quem os tablóides não hesitaram apelidar de Corvo, não tinha metas. O seu método era claramente perfeito, mas roubava os diamantes com maior exposição mediática, e não aqueles que realmente valia a pena roubar. Não que esses fossem menos valiosos, mas havia muitos outros com características mais raras aos quais ele não prestou atenção. Isso separava A Rainha e o Corvo, claramente. Sawyer, passando os olhos pelas fotografias mais recentes, procurou algum detalhe, alguma coisa oculta que lhe acendesse uma faísca no cérebro. Catalogou na mente tudo aquilo que o olhar captava. No entanto, não encontrou nada lhe que saltasse especialmente à vista. Fechou os olhos. Não precisava deles para ver os crimes d’A Rainha, havia memorizado aquelas imagens há muito tempo. Sabia que nada de extraordinário se lhe ia manifestar, perdera a esperança após extensa procura e pesquisa. Não havia valido a pena. Ela era mais inteligente que ele.

            Durante os últimos sete anos, Sawyer tivera o tempo suficiente para processar tudo aquilo. Ainda lhe parecia incrível o facto de haver tal mente que conseguisse engendrar um esquema tão magistralmente arquitectado. Os seus olhos azuis não lhe saíram da mente, como se o observassem de um postigo divino, de uma abertura para uma vida que lhe parecia real mas que podia não ser. Escrutinando-o. Impedindo-o de aceder ao nível mais profundo da memória e da compreensão. Durante os primeiros tempos, no hospital, a curiosidade e a revolta lutavam dentro dele. Não conseguia esquecer a voz dela, quente como brisa exótica, as palavras que ela dissera e ele sabia serem cruéis. A dor impedia-o de apagar as coisas que não queria guardar. Toda a gente havia sofrido com aquilo: ele, Dexter, os pais, os colegas, os amigos, até mesmo Marianne Gray. Especialmente Marianne Gray. A relação deles nunca fora a melhor, e ele sabia o amor que Dexter nutria por ela (aliás, essa fora a verdadeira razão porque Dexter voltara a Washington, mesmo que não o tivesse admitido), mas Sawyer não podia deixar de manter um certo carinho, se bem que discreto, em relação a ela. Haviam enfrentado muita coisa, partilhado muita informação e ajuda mútua. Haviam passado noites em branco a discutir pormenores controversos dos casos. Mesmo assim, tinha partido sem a avisar, e ela ficara extremamente magoada. Mas isso eram águas passadas.

            Sobre a consola, no sítio onde devia estar a televisão, Sawyer havia pousado uma alta torre de pastas cor de creme. Ele esticou o braço para conseguir pegar numa delas, aquela que se encontrava no topo. Abriu-a e levou o dedo aos lábios para o humedecer. Voltou as inúmeras páginas. Tratavam-se dos comprovativos de compra de vários dos diamantes que A Rainha havia roubado. Pelos vistos, ela tinha vendido todas as suas preciosas pedras pouco depois dos assaltos. Todas menos uma: Nebulosa. Esse detalhe em particular intrigava-o. Porque é que ela havia vendido todos os diamantes menos aquele? Ela sabia bem que, se fizesse as vendas da maneira certa, nunca poderia ser detectada. Então porque não vendera o Nebulosa? Tinha de haver alguma razão, mas essa razão escapava-lhe. Subitamente, reparou num dos comprovativos. O vendedor havia assinado, ironicamente, Elizabeth Queen. No entanto, não tinha sido isso a chamar-lhe a atenção. Como nunca reparara naquilo antes? Provavelmente, aqueles comprovativos haviam chegado ao FBI depois de ele já se ter retirado do caso. O documento era proveniente de uma casa de penhores com sede fixa em Washington, casa a qual já havia sido revistada várias vezes antes do caso por suspeitas de que o dono, um indivíduo a quem chamavam Iggy, tinha ligações a várias cadeias criminosas de tráfico de jóias e pedras preciosas. Um dos diamantes tinha sido deixado lá, em troca da modesta quantia de dois milhões de dólares. Como é que o dono de uma loja de penhores podia ter acesso a dois milhões de dólares?

            Sawyer levantou-se e abriu a janela. Ou muito se enganava, ou aquele indivíduo ia dizer-lhe quem era A Rainha.

publicado por Katerina K. às 19:53

24
Jan 10

             Marianne Gray saiu da sombra das colunas exteriores do Museu de História Natural de Nova Iorque. Tentou endireitar, sem êxito, uma mecha da franja que tão afincadamente tentara esticar essa manhã e puxou a saia bem cintada até ao local ao qual pertencia. Verificou as unhas. Voltou a passar os dedos pela franja; os brincos tilintaram suavemente.

            A essência de um bom jornalista residia nas suas fontes e nos seus contactos. Marianne sempre se orgulhara da sua poderosa influência no mundo jornalístico. Como dizia muitas vezes, quase num lema, todas as barreiras tinham um furo; e lá estaria ela, para o encontrar e atravessar gloriosa e inesperadamente.

            A sombra recortou-lhe um rectângulo no rosto pálido. Sorriu levemente quando viu, na forte luz das dez da manhã, o brilho de uma camisa cinzenta amarrotada. Com o salto do sapato, impulsionou-se para as escadas e rapidamente alcançou o homem que se afastava em direcção a um Volvo.

            - Agente Hayden, como é bom vê-lo. – disse ela, num tom de voz simples, mas, ainda assim, irónico.

            O homem parou no topo de um degrau, sem se virar. Ela ouviu-o a soltar uma expiração longa e, de algum modo, perturbada.

            - Marianne Gray. – disse ele, e voltou-se.

            A mulher tentou não se mostrar surpreendida, mas tal emoção não era possível esconder. Marianne lembrava-se de Sawyer Hayden como um indivíduo pálido, de olhos azuis e cabelo enegrecido pela espessa camada de gel que o mantinha no lugar. Lembrava-se dos fatos negros e da expressão fria, do distanciamento intelectual. No entanto, o olhar que lhe foi devolvido pulsava de algo que não era afastamento, mas sim uma vida quente e líquida que parecia escorrer-lhe pela pele extremamente morena.

            - Meu Deus. – soltou ela, num fio de voz – Sawyer, estás diferente.

            -Sete anos no Texas a cuidar de cavalos deram-me uma certa cor.

            Ela sentiu uma imensa vontade de se sentar e de ficar a olhá-lo durante horas. No entanto, a voz dele, subitamente fria e profissional caiu-lhe em cima como um peso.

            - Mas diz-me o que queres, Marianne. Coisa boa não é.

            - Oh, Sawyer, tu sabes o que eu quero: informação.

            - Só te falta esfregar as mãos e soltar uma gargalhada maléfica, mulher.

            Marianne lembrava-se da eterna ironia de Sawyer Hayden. Ele sempre a ajudara muito; graças a ele tivera acesso a muitos exclusivos, os quais lhe abriram as portas da New Yorker. Devia-lhe isso.

            - Vá lá, dá-me uma ajuda.

            - Sabes que não posso falar de um caso em progresso.

            - Ah! – ela apontou-lhe um indicador acusador – Então estás de volta ao FBI!

            Ele baixou a cabeça e passou a mão pelo pescoço, lentamente. Nunca podia dizer nada na presença de Marianne; ela tirava as elações mais elaboradas de um monossílabo grunhido entre dentes. O talento deles era aproximadamente o mesmo, mas ela trabalhava com palavras, e ele com pessoas.

            - Não, Marianne, não estou. – disse, com um suspiro – Só vim dar uma ajuda. Isso não invalida o facto de eu não poder comentar o caso. Sabes que, de qualquer maneira, me ia meter em problemas burocráticos se o fizesse. Portanto, não esperes que te ponha dentro do assunto; não o vou fazer.

            - Muito bem. – respondeu ela, encolhendo os ombros – Vou ter de descobrir tudo sozinha. Já me habituei, sete anos sem ti deram-me essa virtude.

            Sawyer soube que o que ela disse não se referia apenas ao facto de deixar de ter uma fonte de informação, mas também ao facto de ele se ter ido embora de Washington sem lhe dizer nada. Lamentava tê-lo feito, mas o arrependimento não ia resolver as coisas, agora que elas tinham acontecido. Ele viu a sobrancelha dela elevar-se de forma interrogativa.

            - Morreste psicologicamente, ou assim? Estou a falar contigo, Sawyer.

            - Eu sei. Não vou mudar a minha opinião.

            - Enfim, tu é que sabes. E o teu irmão, como está?

            - Bem. Lesionado, mas bem. Está cá de visita.

            Marianne sorriu.

            - O Dexter está cá? Isso chega-me. Bem, vemo-nos por aí.

            Dando-lhe um toque suave no ombro, Marianne desceu a escadaria do Museu e assobiou com força para chamar um táxi. Entrou, fechou a porta e acenou a Sawyer através da janela. No seu sorriso, havia algo que Sawyer conhecia, mas já não se lembrava o quê.

publicado por Katerina K. às 19:49

22
Jan 10

             Aldous McBee revirou os olhos quando viu Sawyer Hayden, vestindo apenas um par de jeans e uma camisa cinzenta completamente amarrotada, a segurar um cigarro numa mão e um fumegante copo alto de Starbucks na outra. Nada melhor que nicotina e cafeína para arrebitar, segundo um popular grupo de agentes do Bureau. Aldous nunca fora um deles. Eram cinco da manhã.

            Sawyer viu Aldous McBee a aproximar-se hesitantemente. Com uma expressão divertida, bebeu um golo comprido de café e soltou um sonoro bom dia.

            - Bom dia. – respondeu o outro.

            Os amplos sacos negros que pendiam dos olhos de Aldous confirmavam a suspeita de que este não fazia serviço imediato de campo há bastante tempo. Talvez tempo demais.

            O Museu de História Natural de Nova Iorque, à luz pérola da manhã, emanava um charme egípcio de túmulo real; as altas colunas, a pedra branca, a sua imponente e fabulosa presença como menir no centro do burburinho citadino. Normalmente, encerrava uma das mais espectaculares colecções do mundo. Naquele momento, encerrava mais do que isso.

            Vince Moretti saiu do edifício e passou por baixo da fita amarela gravada com Do Not Cross em gordas letras negras. Na claridade matinal, Sawyer percebeu que o seu cabelo, apesar de abundante e forte, encontrava-se quase totalmente branco. O homem, de rosto cansado, acercou-se dos outros dois com as mãos nos bolsos do fato.

            - Bom dia, senhores. Temos aqui mais um presente do ladrão de diamantes.

            Sawyer expirou em prazer. Ia poder ver pessoalmente uma das cenas do crime. As fotografias, tão impessoais, não traziam o cheiro do crime, o sabor do ar pesado do nauseabundo odor a sangue. Colocou o cigarro entre os lábios para tentar disfarçar a sua ansiedade. Aldous retirou imediatamente um bloco de notas do bolso.

            - Que informação é que já temos? – perguntou, numa tentativa de parecer profissional.

            - Para já, – disse Moretti – temos dois homens aterrorizados.

            Aldous mostrou uma expressão confusa. Sawyer sorriu. Já conhecia aquela técnica.

            - E o que é que não temos?

            - Ah! – Moretti fez um gesto de satisfação – Isso já é mais interessante. Venham.

            Apesar de todo o aparato policial, Sawyer reconheceu, com algum deleite, o amplo vestíbulo do Museu. Tanto ele como o irmão, durante a infância, eram entusiastas exploradores do jurássico. Assim, aquele lugar levava-os ao auge do êxtase intelectual. Continuava tudo sensivelmente igual, no mesmo esplendor e frágil névoa que separava o conhecimento da imaginação. Passou os olhos pelo compartimento, observando os detalhes que lhe eram apresentados. No entanto, o que viu deu-lhe mais informações acerca da equipa do FBI do que acerca da investigação propriamente dita. Viu Laurie Ashton, debruçada sobre uma secretária, a fitar insistentemente um exemplar da New Yorker, como se esperasse que esta fosse levantar voo. Perto dela, Bob Barton empunhava um caderno de capa couraçada e fazia um inventário de todas as provas que haviam sido encontradas. Provas de quê, não tardariam a saber. Vince Moretti atravessou o vestíbulo, inundado pela cacofonia laboral, e estacou o passo perto de uma majestosa porta de madeira que Sawyer sabia dar acesso a uma das salas de exposição.

            - O que temos – disse o Director – não é fácil de explicar aos jornalistas, muito menos ao Mayor. O Museu é um edifício extremamente seguro; no entanto, foi, efectivamente, roubado. Se isto sai da maneira errada, é provável que tenhamos um problema burocrático entre mãos.

            Aldous assentiu, à medida que crescia nele a impaciência de ver o que aquela porta escondia. Sawyer, pelo contrário, já esperava tudo. O que quer que fosse que tivesse acontecido, não seria nada que ele já não tivesse imaginado. Quando a equação envolvia um indivíduo tão ou mais deturpado que A Rainha, já se esperava o inesperado.

            - Entremos.

            Ambos os homens reconheceram a sala de exposição dos diamantes, apesar de esta ter sido obviamente redecorada. As paredes, pintadas de negro, concediam uma sensação de infinito, apenas quebrada pela presença de inúmeras vitrinas de vidro duplo que continham as mais valiosas pedras preciosas do mundo. Rubis, safiras, topázios, pedras de jade, águas-marinhas, enormes ametistas e esmeraldas enchiam as vitrinas, dispostos de forma profissional e agradável à vista, perfeitamente inventariadas e etiquetadas. No centro da sala, erguia-se um expositor maior e mais alto, com base de ferro maciço. No entanto, encontrava-se vazio. A voz de Vince Moretti pareceu mais pequena ao atravessar o compartimento.

            - Neste momento, estava em exposição a colecção permanente e privada do Museu. A pedra roubada fazia parte desse vasto leque e, sem exagerar, é possível dizer que se tratava da mais rara de todas elas. Chama-se Labareda, as suas características são semelhantes às do Brilho do Pacífico, à excepção da sua cor. O Labareda é um diamante vermelho que já pertenceu à colecção de, entre outros, Jonathan Steel.

            Sawyer franziu o sobrolho. Confundia-o o facto de esse homem estar sempre, de algum modo, relacionado com os roubos. Decidiu fazer uma pesquisa sobre isso quando voltasse à sede.

            - Agora, o que mais nos inquieta é o facto de as provas físicas serem extremamente reduzidas. Não há impressões digitais nem resíduos orgânicos, apenas um par de pegadas afundadas na carpete ou um minimal conjunto de fios. Mais nada. E, apesar de termos dois guardas como testemunhas, a única coisa que eles afirmam terem visto é a sombra do monstro.

            - Não foi essa a expressão que os seguranças do Jonathan Steel também usaram? – perguntou Aldous.

            - Sim. – respondeu Moretti – É curioso, não é?

publicado por Katerina K. às 21:40

20
Jan 10

             Os números verdes brilharam contra o fundo negro do despertador numa luz tímida e intermitente. Uma e meia da manhã. Sawyer virou-se na cama e colocou o braço por baixo da cabeça. Não conseguia dormir. Sempre que fechava os olhos, nem que fosse por um segundo, a sua mente era mergulhada na memória implacável do seu único encontro com A Rainha.

 

            A forte porta circular do cofre estava aberta para trás, encostada à parede cimentada da cave do banco. Sawyer Hayden sentia o peso do silêncio sobre os ombros e o coração a bater insistentemente contra o lado interior do peito. Ergueu a arma, estendendo os braços e contraindo todos os músculos. O tecido da camisa adejou levemente com a aragem gelada que provinha do interior do cofre. A única coisa que conseguia ver era uma longa linha de prateleiras de metal a estenderam-se até à humilde parede branca que marcava o final no compartimento. No entanto, sabia que não estaria sozinho dentro daquele cofre. Sabia que Ela estaria lá. Sabia.

 

            O soalho rangeu suavemente. Pela frincha da porta, Sawyer viu o perfil escuro do irmão a recortar-se na claridade amarela do corredor. Desapareceu, e voltou o negrume. Era bom ter o irmão em casa, depois de todo o tempo que passara sem o ver. Nada fora o mesmo desde a morte do pai, um dos melhores agentes da força policial de Washington DC. A mãe sempre se opusera veemente ao desejo que Sawyer tinha de se juntar ao FBI, mas isso nunca fora impedimento a que essa fome fosse saciada. Com um QI de 184, Sawyer Hayden não era um homem comum. O seu invulgarmente aguçado intelecto permitiam-lhe que discernisse coisas que passavam como vento aos restantes agentes do Bureau. Lembrava-se do caso da morte de Allison May, o qual resolvera pela simples observação de uma fotografia da cena do crime. A essência estava nos detalhes, nas coisas escondidas, nas gotas de sangue que não haviam sido limpas, na posição de uma cadeira, numa folha de papel amarrotada a espreitar da lareira. Havia sempre alguma coisa esquecida, alguma coisa fora do lugar. Mas não fora assim com A Rainha. Com o tempo, Sawyer aprendera a aceitar a sua derrota. Ela era mais inteligente que ele e infinitamente mais analítica; não havia nada de errado com os seus crimes, e isso, ao princípio, consumia-o. Não existiam detalhes, apenas vento e silêncio. No entanto, a ideia que agora o inquietava era outra. Estava reformado há quase sete anos, e perdera toda a prática. Encontrava-se enferrujado, não física mas psicologicamente. Se da primeira vez, quando se encontrava no auge da sua carreira, não a conseguira encontrar, o que faria com que agora conseguisse? Aparentemente, nada estava a seu favor. Nem mesmo o tempo. Olhou o despertador. Duas da manhã.

 

             Viu um vislumbre da figura dela entre o brilho metálico das prateleiras. Ao contornar a parede, escondeu-se atrás de uma coluna e lançou um olhar pela fissura de um armário próximo. Ela nada mais era do que um elegante corpo revestido por uma camada de tecido negro. Do ombro, pendia-lhe uma sacola militar com aspecto pesado. Sawyer sabia que Nebulosa estaria dentro dele. Subitamente, ouviu-a expirar; virou-se de forma lenta e progressiva, como se quisesse propositadamente manter a expectativa até ao último instante. Apesar da mascara que lhe cobria o rosto, era inegável que A Rainha era, de facto, uma mulher. A única coisa que o disfarce revelava era um pujante par de olhos azuis, salpicados de cristais cinzentos, como se flutuassem na retina obstinadamente. Perdeu-se naquele olhar.

            - Boa noite, Agente Hayden.

            Quente. Vermelho. Viscoso. Sangue no chão. O seu sangue. E a voz dela tépida e doce contra a pele.

 

            - Acorda, Sawyer.

            A voz do irmão arrancou-o das memórias. Sentiu o seu toque na pele do ombro.

            - Dex? Que se passa?

            - Não sei bem. Tens pessoas na sala a quererem falar contigo.

            Sawyer içou-se sobre os cotovelos, consultando o visor do despertador. Três e dois da manhã.

            - É um pouco cedo para visitas.

            - Eu sei, eu sei. Em circunstâncias normais, não os deixaria entrar, mas eles insistem que é urgente. E, bem, parecem o teu tipo de gente.

            - O meu tipo de gente? O que é que isso supostamente quer dizer?

            Dexter suspirou.

            - São cinco agentes do FBI.

publicado por Katerina K. às 22:38

19
Jan 10

             O gelo estalou dentro do copo com um som seco, distorcendo a imagem do balcão de alumínio que sustentava o recipiente. O líquido estremeceu levemente, com a cor rica do âmbar a rebrilhar de forma suave. Sawyer Hayden colocou as mãos em volta do vidro grosso do exterior do copo e girou-o lentamente entre as palmas. Passara a tarde a percorrer relatórios, fotografias, pastas e caixas de provas e material recolhido numa diminuta e esterilizada sala de interrogatórios na sede do FBI. A quantidade de informação que tivera de processar havia-lhe transformado o intelecto numa papa pegajosa que se lhe colava à parede interior do crânio. De qualquer maneira, nada disso havia feito com que o caso do Brilho do Pacífico parecesse mais claro.  Nem mesmo à luz das provas os acontecimentos eram compreensíveis. No entanto, sabia que tinha sido chamado por causa de outro caso, o caso d’A Rainha, e isso fazia com que quisesse voltar para o Texas, para os seus cavalos. Mas sabia que isso não seria possível.

Sawyer passou a mão pelo flanco; um arrepio laminou-lhe a pele. Por baixo da camisa, conseguia sentir a textura rugosa da cicatriz que tinha há aproximadamente sete anos. Era a única recordação palpável que A Rainha lhe tinha deixado, uma cicatriz. A dor física que a bala lhe imprimira havia desaparecido há muito tempo, mas a dor psicológica, as memórias, eram a maior mágoa. Mergulhou o indicador no whiskey e levou-o aos lábios. O álcool trincou-lhe a língua e fez-lhe arder o palato. Empurrou o copo para longe, não ia beber.

            - Sawyer?!

            Ao ouvir aquela voz, quente como café de madrugada, um amplo e dourado sorriso desenhou-se no rosto de Sawyer. Ao virar-se, foi subitamente envolvido num abraço forte e masculino.

            Dexter Hayden tinha braços fortes e musculados, consequência do árduo treino que lhe era imposto pelo treinador. Aos vinte e um anos, era o mais recente jogador dos New York Yankees, e o prodígio da modalidade. Fisicamente, sempre fora parecido com Sawyer, o irmão mais velho, apesar de o seu rosto ser mais infantil e a pele menos morena. A testa alta era salpicada de fios de cabelo loiro como feno, e os fogosos olhos eram mais azuis que as profundezas do Pacífico. O nariz patrício e os lábios simples e bem desenhados concediam-lhe um charme pueril e redondo.

            Sawyer soltou-se do enlace e segurou o irmão pelos braços.

            - Olá, Dex. Não sabia que estavas por Washington.

            O outro sorriu.

            - Estou, esta semana. – dobrou a manga direita da camisa e mostrou a parte superior do membro completamente coberta por uma ligadura cor de carne – Ruptura de ligamentos. E tu? Pensei que andavas pelo Texas.

            Sawyer inclinou a cabeça e contraiu os músculos do rosto.

            - Vá lá, Sawyer. Eu conheço essa cara, é a cara que fazias para os jornalistas quando estavas quase a dizer que não prestavas declarações.

            - Estás a ficar demasiado inteligente, Dex.

            - Não é inteligência, foram todos os anos que passei na mesma casa que tu. Vá, diz-me.

            Uma vaga hesitação.

            - A Rainha. Chamaram-me para dar uma mão num caso.

            - Ela está de volta?!

            - Não. É um caso relacionado.

            Dexter sentou-se ao lado do irmão, cruzando os braços com alguma dificuldade.

            - Tens a certeza que queres fazer isto, Sawyer? Depois de tudo o que aconteceu?

            - Dex…

            - Ela deu-te um tiro.

            De súbito, as imagens apressadas daquele dia encheram-lhe a mente, com cores que ele já não se lembrava que existiam. Os olhos dela, tão azuis como cinzentos, gelados, mudos; a sua voz suave e tépida de encontro à sua pele. Era só isso que conhecia dela; A Rainha não tinha rosto. «Boa noite, Agente Hayden.» dissera ela. E deixou-o cair, com o sangue a pingar viscoso no chão. Vermelho. Rúbeo. Quente.

            - Sawyer?

            - Desculpa, estava a pensar.

            - Ouve, como teu irmão, não quero que te metas numa coisa da qual te podes arrepender. Eu conheço-te, sei que não vais desistir disto, e que o caso vai crescer dentro de ti, tal como da primeira vez.

            Sawyer sorriu. Era verdade, nunca fora homem de desistir, muito menos de abandonar um caso a meio. O irmão conhecia-o suficientemente bem para saber o tipo de coisa da qual ele era capaz. Lentamente, levantou-se e colocou o braço em volta dos ombros de Dexter.

            - Vamos, Dex. Hoje ficas em minha casa.

publicado por Katerina K. às 14:52

18
Jan 10

                 Não era a primeira vez que Mike Selby fazia o turno da noite no Museu de História Natural de Nova Iorque. No entanto, não se sentia confortável na dormente penumbra que abraçava as paredes. Observou a bandeira Americana, com as listas caídas e as estrelas ocultas entre as rugas do tecido, pendendo da parede com um orgulho nostálgico. O silêncio quase total, apenas rasgado pelo som que Mike soltava ao mexer-se, estendia-se a todo o vestíbulo e enrolava-se como uma serpente e, torno das grandes colunas cor de salmão. Estas, beijando o tecto abobadado, mantinham-se monumentalmente hirtas, grossas como pernas de gigantes. No centro do vestíbulo, as sombras recortadas dos esqueletos pré-históricos de dinossauros abriam as colossais bocas repletas de dentes fossilizados como se fossem embocar todo o edifício. Mike engoliu em seco; não podia negar que, à noite, o museu era estranhamente intimidante. Silenciosamente, percorreu o compartimento com as chaves a bater contra as pernas e a lanterna bem firme dentro da mão. O som metálico do chaveiro confortou-o, levando-o a abstrair-se de todo o ambiente envolvente. Quando chegasse a casa, teria uma bela chávena de café fumegante e saboroso a esperá-lo sobre o balcão da cozinha. Sabia que Sonia já teria saído para o trabalho, mas, mesmo assim, a ideia deliciava-o. Perturbadoramente, o dinossauro continuava a lançar-lhe um olhar incendiado, que acompanhava o seu movimento. E o silêncio aterrador começava a enchê-lo, a afogá-lo. O olhar do dinossauro, o som do chaveiro, a bandeira descaída, as colunas imensas, o ar seco e sufocante, a escuridão. Uma gota de suor deslizou-lhe pela testa e caiu na camisa cor de cordel.

                - Mike?

                Mike Selby virou-se rapidamente, de lanterna em riste, com os olhos redondos extremamente abertos e uma expressão de ansiedade e terror estampada no rosto magro. A voz viera de trás, da fissura entre as colunas.

                - Que cara, Mike! Assustei-te?

                A figura baixa de Felix Strauss revelou-se na luz tímida, a careca a refulgir com um brilho cinzento.

                - Sim! Apareces assim a uma pessoa, todo sorrateiro. Valha-me Deus.

                - Que exagero. – Felix revirou os olhos e tirou as mãos dos bolsos das calças caqui.

                - Não é um exagero. Está um silêncio de morte, e isto é bastante arrepiante a esta altura da noite. Tu é que andas em pezinhos de lã, como se quisesses matar-me do coração.

                - Estás tão sensível, Mike. – disse o outro, num tom de escárnio.

                - Olha, cala-te.

                Felix Strauss afastou-se em direcção à sua secretária e abriu uma gaveta, da qual tirou um exemplar da New Yorker. Mike Selby olhou a revista por cima do ombro e apoiou-se na perna esquerda.

                - Já leste o artigo dos diamantes?

                - Sim. – respondeu Felix, sem levantar os olhos do papel – Aquela jornalista é uma coscuvilheira do pior.

                - Faz parte do trabalho dela. Pagam-lhe para isso.

                - Pois, sim.

                Após um momento de mudez, durante o qual o silêncio não parecia tão pesado, Mike pousou os cotovelos na secretária do colega e murmurou:

                - Olha lá se vinha agora um ladrão e nos matava aos dois?

                Felix baixou a revista e contorceu o rosto numa expressão de troça.

                - Claro, claro! E, já agora, os dinossauros ganham vida e vão comer o Chrysler Building.

                Mike cruzou os braços. Não havia dia que Felix Strauss não o tratasse como se fosse o seu irmão mais novo. Recostou-se contra a cadeira, pousou a lanterna no colo e fechou os olhos. O rosto moreno de Sonia apareceu-lhe na mente, lentamente, a dançar de forma saltitante. Sorriu, deu uma volta no fumo cinza da consciência.

                Um som. Mike abriu os olhos.

                - Felix, ouviste isto?

                O outro não baixou a revista.

                - Já estás a ouvir coisas. Pára de ser paranóico.

                No entanto, o mesmo som continuou a repetir-se: tap tap, tap tap, como uma porta a bater levemente com o vento. Tap tap, tap tap.

                - Não estou a ser paranóico. Não estás ouvir?

                Tap tap, tap tap. Cada vez mais alto, ecoando na cavidade oval do vestíbulo, a espalhar-se rapidamente em volta das colunas, em volta do dinossauro. Cada vez mais rapidamente. Tap tap, tap tap.

                - Oh, meu Deus…

                Silêncio. E tudo se apagou.

publicado por Katerina K. às 15:19

16
Jan 10

             Valancy Akren levou a chávena de café etíope aos lábios e, depois de sentir a língua passar pela porcelana morna, saboreou o líquido escuro. Por cima dos óculos de sol Gucci, observou a página do New Yorker que reflectia a luz do sol sobre o tampo marmóreo da mesa. Fez os olhos passar demoradamente pelas linhas negras perfeitamente impressas que relatavam os inúmeros roubos recentes que tinham tido lugar nos Estados Unidos. Diamantes. Valancy fez um sorriso aparecer sobre a linha da chávena. Algures na América, havia alguém como ela. Pela terceira vez, releu o artigo. Era uma magnífica peça jornalística, contada tão vividamente que fazia o coração arder.

            - Esta Marianne Gray é fabulosa.

            Elijah levantou o olhar e pousou o jornal sobre a mesa.

            - Quem?

            - A jornalista do New Yorker. Vê.

            Valancy virou a revista e apontou com o dedo a página na qual se situava o artigo do qual falava. Rapidamente, Elijah leu os quatro primeiros parágrafos com os lábios entreabertos de forma melancólica e o cabelo seco penteado de forma tão tosca que chegava a parecer complexa.

            - Se há coisa que esta mulher sabe fazer, é escrever. Óptimo artigo. E fala de ti, Val.

            Ela ergueu uma sobrancelha num arco quebrado.

            - Sim, mas não fala do Brilho do Pacífico.

            Elijah apoiou os cotovelos nus na mesa e enquadrou o rosto oval na concha que formou com as mãos. Fixou os olhos verde-água na mulher e, sentando-se na ponta da cadeira, cerrou o cenho.

            - Sabes, Val, nunca percebi o teu fascínio por esse diamante. Quer dizer, entendo que é uma pedra fantástica, mas tens o Nebulosa, que é igualmente espectacular.

            Ela empurrou os óculos pela cana do nariz e soltou o mar de cabelo ruivo pelas costas. Sem responder à pergunta que lhe tinha sido feita, voltou a encaixar a boca na chávena. Lembrava-se da primeira vez que havia visto o Brilho do Pacífico, a ser atravessado por numerosos feixes prateados de luz que vinham de todos os lados da sala de exposição, no Museu de História Natural de Nova Iorque. Era, sem dúvida, o mais belo diamante que já havia visto. Parecia feito de nevoeiro negro e cerrado, que flutuava entre paredes de cristal cuidadosamente talhadas e polidas. No dia seguinte, voltara para vê-lo, e no dia a seguir a esse também. Visitar a pedra tornou-se ritual compulsivo até ao dia em que foi removido de exposição. Ao fim desse tempo, voltou para o Brasil, e o primeiro pensamento que lhe dançou na mente ao ser atingida pelo tépido vento sul-americano foi o ardente desejo de descobrir onde estava o diamante e de o ter. No entanto, o seu habitual controlo psicológico fez essa ideia voar para longe, num sítio onde lhe doía a memória. Ouviu Elijah pigarrear.

            - Digo-te, Valancy, se eu não vivesse contigo, apostava que tinhas sido tu a roubar o Brilho do Pacífico e todos os outros. Tudo demasiado perfeito, demasiado bem executado. Algo que nós faríamos.

            Ela lançou-lhe um esgar ligeiro e sonhador, como se a sua mente se tivesse dividido em mil pedaços e tivesse sido espalhada com a brisa.

            - Eu sei, é algo demasiado como eu.

            - Temos concorrência.

            - Não. – pousou a revista – Já não estamos no negócio.

            - Mas continuamos a ter a fama, ou pelo menos tu continuas.

            Valancy soltou uma risada por entre os lábios fechados.

            - Pois. A Rainha. Nunca percebi bem essa alcunha, é um bocadinho ridícula.

            - Achas?! Eu penso que te assenta extremamente bem. Querias o poder, o dinheiro, a fama. Escolhias as peças mais caras e mais raras. Fugias como quem caminha num desfile de moda. És uma rainha.

            - Fui uma Rainha, Eli. Fui.

            Valancy pousou uma nota sobre a mesa e, caminhando sobre os saltos com uma elegância sobre-humana, afastou-se em direcção à rua e desapareceu na esquina mais próxima. Elijah recostou-se e acabou o café que ela tinha começado.

publicado por Katerina K. às 12:16

13
Jan 10

            Jonathan Steel olhou com uma lânguida falta de atenção para a caixa metálica que descansava sobre a mesa. Há pouco mais de doze horas, esta contivera Brilho do Pacífico, o mais fabuloso diamante negro da história da humanidade. Agora, o veludo vermelho do seu interior era apenas habitado pelo ar morno do princípio de tarde. Expirou com força. Nada compensaria aquela perda. Absolutamente nada.

            Marianne Gray mudou de posição e girou o anel de platina em volta do indicador. A sua unha, coberta por uma refulgente e estaladiça camada de verniz azul cerúleo, arranhou a superfície do braço da poltrona. Não conseguia de deixar de mostrar um sorriso ligeiramente imbecil, característico da sua profissão. O bloco de notas, gentilmente pousado sobre o regaço, encontrava-se aberto numa página em branco intitulada de «Brilho do Pacífico». Lentamente, Marianne encaixou uma mecha de cabelo negro atrás da orelha e lambeu os lábios.

            - Senhor Steel, não tenho o dia todo.

            Após um minuto de silêncio, o homem respondeu placidamente, como se dissesse a coisa mais óbvia do mundo.

            - Se quer a história, menina Gray, vai ter paciência. – sorriu.

            Marianne recostou-se na poltrona, e os seus múltiplos brincos tilintaram contra a pele do pescoço. Com um gesto flutuante, agitou a caneta no ar.

            - Ouça, isto não é só para meu interesse.

            Pela primeira vez, Jonathan pousou o olhar castanho na figura elegante de Marianne Gray. Antes de responder, não pôde deixar de reparar que, apesar de excêntrica, ela era uma mulher cativante. Tê-la numa carreira jornalística era um pleno desperdício. Esperou que ela acabasse de afastar a franja dos olhos e falou.

            - Diga-me o que quer saber.

            - Tudo. – respondeu ela, sem deixar aquele sorriso estranhamente penetrante.

            - Isso é extremamente vago, menina Gray.

            - Muito bem, então. – voltou algumas páginas do seu segundo bloco de notas e passou os olhos pelas perguntas que tinha anotado em letra miudinha – Fale-me do diamante.

            - O diamante veio parar às minhas mãos há três anos, quando apareceu num leilão de jóias e pedras preciosas. Como é óbvio, eu não podia deixar escapar tal pedra. Assim, não dei limites ao dinheiro que podia gastar na compra do objecto. Quando já o tinha, gastei algum tempo a analisá-lo. Não gosto de confiar as minhas pedras a nenhum especialista, faço tudo sozinho. Apercebi-me que era, de facto um diamante fabuloso, e que provavelmente valeria mais do que a exorbitante quantia que paguei por ele. Não tardei a descobrir que se tratava do Brilho do Pacífico, perdido em meados do século XVIII. Através de alguma pesquisa, inteirei-me da sua história e real valor. Com o passar do tempo, emprestei-o apenas uma vez: ao Museu de História Natural de Nova Iorque. A pedra esteve em exposição durante alguns meses. No final desse período, foi-me devolvida intacta.

            - Compreendo. – replicou Marianne, apontando alguma coisa na margem de uma folha.

            - Mantenho o diamante em minha casa, num cofre-forte, guardado por dois seguranças. O sistema inclui lasers e imagens em infra-vermelhos.

            - O diamante era, portanto, mantido num ambiente de alta segurança? – perguntou ela, levantando os olhos.

            - Absolutamente.

            - Então como explica que a pedra tenha sido roubada?

            Jonathan meneou a cabeça levemente e passou a mão pelo cabelo cor de avelã cuidadosamente penteado.

            - Não sei, é algo que me escapa.

            - Verdade? – perguntou ela, ironicamente.

            - Mas o caso não está nas minhas mãos, menina Gray. Sugiro-lhe que fale com um agente do FBI.

            - Ah, fá-lo-ei!

            Com um sorriso amplo, Marianne descruzou as pernas e fechou o bloco de notas.

 

publicado por Katerina K. às 14:07

11
Jan 10

            A paisagem passava em frente aos olhos de Sawyer Hayden como faíscas electrificadas. Dentro do carro do FBI, sentado sobre o banco de couro negro, o seu corpo encontrava-se completamente contraído. Já não se lembrava como aqueles carros eram frios. Ajustou o colarinho da camisa e apoiou o cotovelo na porta do automóvel. Pelo canto do olho, observou Aldous McBee. Os seus longos dedos aracnídeos tamborilavam sobre o tecido das calças. Nervosismo. Olhou o anelar esquerdo e viu a pequena descoloração em volta da pele, no sítio onde anteriormente estivera a sua aliança. Entre o indicador e o médio, duas marcas ovais a giz azul esbatiam-se calmamente contra a pele. Bilhar, e provavelmente um par de apostas. Sawyer esboçou um sorriso discreto. A quantidade de coisas que se podiam saber sobre uma pessoa apenas pela observação das suas mãos.

            - Daqui a uns minutos, estaremos na sede. – disse Aldous, no tom formal que adoptava quando falava com alguém que não gostava.

            - Eu sei, ainda me lembro do caminho.

            - Calculo que sim. – lançou-lhe um esgar – Sawyer, diz-me: estás mesmo preparado para voltar a este assunto? Sei que com o teu historial, bem, não deve ser fácil.

            - Poupa-me, Aldous. Como se estivesses muito preocupado comigo. Quando eu saí do FBI, tu ficaste com o meu emprego.

            - Verdade, mas não deixo de ter respeito pelo teu trabalho. Foste um dos agentes mais brilhantes que o Bureau já viu. Foi pena aquilo d’A Rainha.

            A Rainha. Sawyer engoliu em seco. Apesar de terem passado sete anos, não havia dia em que não pensasse nela. A Rainha foi o seu terceiro grande caso, e o Bureau tinha delegado toda a responsabilidade nele. Era impossível falhar, pois, apesar de mediático, o caso era relativamente simples. No entanto, A Rainha revelara-se escorregadia e extremamente difícil de apanhar. Era uma mulher diabolicamente inteligente e ambiciosa, que delineava e executava os seus roubos de forma discreta e com uma exactidão perfeita. De qualquer modo, Sawyer nunca acreditara que ela conseguisse fazer tudo aquilo sozinha; tinha, com certeza, um companheiro. Ou companheira. Era difícil dizer. E depois aquele dia, o dia em que…

            Aldous McBee tossiu de forma brusca. Sawyer estremeceu e enterrou o rosto na palma da mão. Odiava quando lhe interrompiam o raciocínio, especialmente de forma tão abrupta. Retomou a linha de pensamento, mas esta foi rapidamente desviada para aquele momento de tão aparente simplicidade durante o qual Aldous tossiu. Sawyer viu confirmada nesse instante a suposição de que Aldous não estava apenas nervoso porque não gostava dele. Aldous estava nervoso porque tinha medo que ele decidisse voltar para o FBI e que ficasse com o seu lugar. Mas Sawyer não ia voltar para o FBI.

            - Chegámos.

           

            O odor a tinteiro de fotocopiadora e o aroma ligeiro do tecido dos fatos continuavam com a mesma intensidade adormecida e omnipresente. Reconheceu o perfume adocicado de Laurie, mais conhecida por Agente Especial Ashton e o som ligeiro que o coldre axilar de Bob Barton fazia ao roçar contra a sua camisa. Tudo continuava imerso na sua dormente normalidade. Ao fundo do corredor, a porta do gabinete do Director recortava-se na castanha claridade. Através do vidro fosco, passava uma luz branca que provinha do interior do compartimento. Aldous estugou o passo e enrolou os longos dedos em volta da maçaneta. Girou-a e a porta cedeu para trás suavemente sobre a carpete.

            Atrás da secretária, o Agente Especial Vince Moretti passava um pano amarelo sobre o seu revólver. As suas mãos, apesar de pálidas, eram fortes e maciças, com as veias salientes na pele ligeiramente coçada. Sem erguer os olhos, falou.

            - Não se bate à porta, Aldous? Onde estão as tuas maneiras?

            O seu rosto quadrado iluminou-se num sorriso lateral que lhe elevou as maçãs do rosto e fez fios de cabelo grisalho cair-lhe sobre os olhos verdes.

            - Peço desculpa, Vince.

            - Tudo bem.

            Sawyer atravessou a porta. A delirante fragrância a almíscar e a tabaco egípcio atingiu-o mais uma vez, exactamente da mesma forma que se lembrava que isso acontecesse. Os olhos do Director, tão vivos no rosto talhado de rugas, fixaram-se nele e percorreram as suas roupas amarrotadas.

            - Bem-vindo de volta, Sawyer.

            Sorriu.

            - Não estou de volta.

            - Isso é discutível. Senta-te.

publicado por Katerina K. às 16:21

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