Não havia mais que negro. Violet perguntava-se se aquilo seria a morte, se era aquela sensação de infinito que se instalava numa pessoa quando se sabe que se vai morrer. O seu corpo encontrava-se dormente, como se estivesse a flutuar. Nesse momento, Violet quis chorar sem o poder fazer. Tinha, finalmente, acontecido; ia morrer, sentia-o no mais fundo do seu ser, tal como conhecimento há muito adquirido. Aos poucos, foi ganhando consciência de que ainda estava viva; a cabeça começara-lhe a latejar, lenta mas insistentemente, num ritmo persistente e marcado. Laivos de dor atravessavam-lhe as têmporas e ardiam atrás dos olhos. Conseguiu, gradualmente, agarrar alguma lucidez, e viu-se envolta por uma quantidade de cheiros e sensações que lhe eram desconhecidas. Sentiu os pulsos quentes e frios ao mesmo tempo; ao mover as mãos, apercebeu-se que estes estavam atados por uma fita de plástico duro e resistente. Rasgões de pele pendiam do nó. Moveu a cabeça para os lados, numa linha curva e lenta, ao se aperceber do cheiro nauseante que lhe chegava às narinas: um perfume intenso, doce e feminino, rodeava-a. Um outro odor viajava entre o negrume que lhe toldava a visão. Cheirava a orquídeas. Violet soube, nesse momento, que perto dela estava Jacqueline Soleil. Tentou mudar de posição na cadeira, sem sucesso, e finalmente desistiu, expirando com força.
- Não vale a pena resistir. – ouviu.
Era a voz dela, sempre calma, ponderada e melodiosa, a derreter-se como açúcar em ponto de caramelo. Violet atirou a cabeça para trás, lambendo os lábios secos. Um travo melífluo quedava-se nas gretas da sua pele – clorofórmio.
- Violet, Violet Simmons. Bem, tenho de admitir que estava bastante ansiosa por te poder receber na minha humilde, hum, casa. – a voz sem corpo como que a cercava em investidas ondulantes – Espero estes dias ter bastantes visitas.
O som de um fósforo a arranhar uma lixa chegou-lhe aos ouvidos e, no escuro silêncio, refulgiu uma pequena chama vermelha. Jacqueline arqueou a mão graciosamente e acendeu uma vela comprida que se erguia, sozinha, no centro de uma mesa redonda coberta por uma toalha de tafetá. Violet sentiu, no negrume do compartimento, o movimento da outra; viu-a a baixar-se gloriosamente e a sentar-se numa cadeira perto dela. A luz tímida da vela lançou-lhe uma luz cálida sobre o rosto, fazendo os olhos violetas parecer cor-de-rosa. Sorriu, e só um pequeno arco na extremidade dos lábios acusava que aquele sorriso não era genuíno.
- Jacqueline, estás a levar isto longe de mais. – Violet fez a cabeça pender para a esquerda cansativamente.
- Achas?! Para já, até estou a levar isto bem calmamente. Mas não te preocupes, não vais estar aqui para ver quando isto começar a ficar feio.
Violet cerrou os lábios e fitou a escuridão daquilo que ela presumia ser o tecto com uma serenidade de quem estava conformado com o seu destino.
- Vou morrer, não vou?
- Sim, provavelmente hoje.
- E depois?
- Depois o Jesse.
Violet fechou os olhos e sentiu o coração pesado no peito.
- Não faças isso, o Jesse não tem culpa de nada que aconteceu.
Jacqueline riu-se alto, arqueando uma sobrancelha na testa lisa e branca.
- Não tens emenda. Mas, de qualquer maneira, fazes-me rir. Ele não tem culpa?! Ele tem quase tanta culpa como o Paul Carter ou até aquele capanga dele que estava a soldo para me matar. Fiquei dois anos sozinha, sem saber o que fazer. E quando finalmente decidi voltar, já nada estava à minha espera. Sabes o que é voltar para casa e saberes que a casa já não é tua? Que atiraram o teu amor fora como inútil e te esqueceram? É terrível, dói, e nenhum de vocês quis saber de mim.
Um fosso de silêncio voltou a dilacerar o compartimento, e Violet percebeu a dor que pendia da voz de Jacqueline.
- Jacqueline, diz-me, - pediu Violet, em voz baixa, enquanto um laivo de esperança se acendia no seu peito – o que é que realmente aconteceu naquele Inverno?