BLOG FECHADO

31
Dez 09

             O tempo estava a passar rápido demais, e o carro não era veloz o suficiente. A agulha do velocímetro apontava nervosamente para os 200 km/h, mas Jesse continuava a pontapear o acelerador como se disso dependesse a vida. No banco de trás, Edward Cole segurava o rosto macilento de Violet Simmons e comprimia a ferida enquanto o Lexus IS 250C contornava as curvas sinuosas da cidade de Paris a alta velocidade. Edward observou o rosto de Jesse pelo espelho retrovisor com angústia a arder-lhe na boca. O facto de Jacqueline estar algemada e sob a custódia de Michael Collins, o qual havia chamado um regimento inteiro de agentes do FBI, não o sossegava. Danny, sentado no banco da frente, era atingido pela mesma sensação. Naquele momento, que parecia curto demais no tamanho da vida, a única coisa que importava era a mulher que, deitada no banco de trás com a cabeça no regaço de Edward, se agarrava à vida com as poucas forças que tinha.

            Jesse virou o volante com violência e o carro guinou numa esquina. Ao fundo da rua, estendia-se uma praça ampla e quadrada, no centro da qual se erguia um obelisco escuro. Todos os candeeiros de rua estavam apagados, hirtos e firmes na rua, adoptando a cor dos corvos. A luz dos faróis incidiu no caminho, e as pedras da estrada brilharam na sua humidade outonal. O veículo entrou na praça com um solavanco e parou abruptamente em frente a uma casa baixa e larga de apenas dois andares com janelas rectangulares e magras que se alinhavam como soldados na fachada do edifício. Jesse puxou o travão de mão e arrancou as chaves da ignição. Abriu a capota e saltou para fora do carro. Vinte segundos depois, Danny e Edward tiravam o corpo mole de Violet Simmons de dentro do automóvel. O outro, suado e sem cor, empunhou um chaveiro, o qual tilintou ao embater contra a madeira da porta.

            A casa estava imersa na escuridão. Jesse atravessou o corredor usando a usa memória fotográfica e chegou à cozinha. Por um momento, parou e levou as mãos ao rosto. O coração batia-lhe no peito como se fosse sair do seu lugar e deslizar até aos pés. Limpou uma gota de suor e respirou fundo. Sem luz não conseguiria salvar Violet. Ergueu os braços e passou as pontas dos dedos pelas paredes até sentir a porta da caixa de electricidade. Procurou uma abertura e inseriu os dedos nela, puxando a porta. Empurrou todos os interruptores para cima e uma vaga de luz artificial ofuscou-lhe os olhos.

            - Jesse? Onde estás?!

            - Na cozinha. – respondeu.

            Danny King assomou à entrada do compartimento, em mangas de camisa, com as calças brancas manchadas de sangue.

            - O que fazemos agora?

            - Não sei. – disse Jesse, em voz baixa.

            - Jesse, ela não aguenta muito mais tempo!

            A tristeza transformou-se em raiva quando o violoncelista explodiu numa ira descontrolada e selvagem, os seus olhos a arder num tom avermelhado.

            - Eu sei que ela não tem muito mais tempo! E isso mata-me, Dan! Mas não sei o que fazer, não consigo pensar!

            Daniel expirou lentamente e pousou a mão no ombro de Jesse.

            - Tem calma, respira. Elimina isso tudo da tua cabeça, tenta ser racional por um momento. Pensa.

            Jesse fechou os olhos. Apagou o rosto cruel de Jacqueline Soleil, os olhares tormentosos de Edward, Danny e Lancelot, a sua própria dor. Tinha de retirar a bala e suturar a ferida, antes que fosse tarde demais. Chamou à memória o local onde costumava guardar o estojo de primeiros socorros e o armário das traseiras. Soube o que fazer.

            - Danny, vais ter de me ajudar.

            - Claro, diz-me o que fazer.

            Jesse uniu as mãos e inspirou fundo.

            - Preciso que me vás ao armário das traseiras, onde se guardam as canas de pesca. Ao lado direito, está pousado um balde branco. Abre-o. Dentro de um saco de plástico, vais encontrar um grande número de anzóis; traz um deles, aquele que te parecer estar em melhor estado. Depois, vai à casa de banho e arranja-me toalhas, muitas toalhas. Eu trato do resto.

            - Muito bem.

 

            Jesse, após ter reunido todo o material que precisava, sentou-se junto a Violet Simmons. O vestido havia sido cortado em dois, e a ferida, profunda e negra, encontrava-se exposta. O rapaz, apesar de saber o que tinha de fazer, estava receoso. Não queria infligir mais sofrimento a Violet, que padecia em frente aos seus olhos, indefesa. No entanto, ia ter de o fazer se a queria salvar. Debruçou-se sobre ela e, passando-lhe a mão branca pelo rosto, falou-lhe no tom mais doce que conseguia.

            - Ouve, Violet, vai ficar tudo bem. Eu vou tratar de ti, mas vais ter de aguentar mais um pouco. Isto vai doer, muito.

            Ele dirigiu o olhar para Edward. Este, empunhando uma toalha de mãos, rasgou-a em dois pedaços e sentou-se atrás de Violet para a poder fixar. Segurou um dos pedaços e colocou-o na boca dela, para que a rapariga não mordesse a língua. Ela fechou os olhos e preparou-se para o que ia acontecer.

            Jesse olhou para as mãos – tremiam. Se havia coisa proibida naquele momento, era que as mãos lhe tremessem. Bastava uma mínima incerteza, e tudo aquilo seria em vão. Assim, estendeu a mão para a pinça, previamente esterilizada, e, a sangue frio, inseriu-a na ferida aberta de Violet. Esta gritou, mordendo a toalha com força e agitando-se no sofá.

            - Está quieta! – gritou Jesse, a quem gotas gordas de suor escorriam pela testa albina.

            A extremidade da pinça roçou algo metálico, e Jesse sorriu quando teve a certeza que tinha conseguido agarrar a bala. Calmamente, extraiu-a; o projéctil, coberto em sangue e tecido muscular, brilhou debaixo das luzes. Edward sentiu o corpo de Violet Simmons relaxar quando deixou de ter a bala dentro de si.

            - O que vais fazer agora? – perguntou o pianista.

            - Suturar. – respondeu Jesse, segurando entre os dedos um anzol resplandecente ao qual estava preso um longo fio negro.

            Ao passar o metal pela pele quente de Violet, Jesse sentiu-se mais calmo. Cuidadosamente, fechou a ferida e desinfectou-a, terminando o procedimento ao tapá-la com um penso e uma camada de gaze. Suspirou.

            A rapariga ergueu debilmente o braço e passou o indicador pelo rosto dele. Os seus olhos mostravam um cansaço extremo; tinha sido, verdadeiramente, levada à exaustão.

            - Obrigada, Jesse.

            Ele sorriu.

            - Dorme, Violet. Precisas de descansar. Está tudo bem.

            E beijou-a levemente nos lábios.

publicado por Katerina K. às 13:06

30
Dez 09

             A bala, voando por entre uma chuva de fumo branco e faíscas douradas, girou veloz pelo ar até entrar na carne tenra do flanco de Violet Simmons. No seu rosto, pálido e brilhante de gotas de suor, ficou esculpida uma expressão de dor, de excruciante dor. Inspirou rapidamente e reteve o ar na garganta, como se não conseguisse mexer os músculos do peito; soltou um som de surpresa e sofrimento, à medida que os seus olhos eram cobertos por uma camada refulgente de lágrimas. Curvou-se para a frente e gemeu, por entre os dentes cerrados. Jesse observava-a, sem conseguir articular uma única palavra. Lentamente, colocou a mão com que segurava a perna dela sobre o local onde a bala tinha feito a sua entrada. Sentiu uma calidez triste a espalhar-se-lhe pela pele. Quando levantou a mão, o tom rúbeo que esta tomara assaltou-o; o vermelho do sangue contrastava com o branco da sua palma, como rubis. Jesse sentiu a morte debruçar-se sobre eles.

            Jacqueline baixou o braço. O seu lábio superior estava levantado num trejeito de arrogância, concedendo ao rosto uma sensação de superioridade.

            - A morte não é o maior dos males; é pior querer morrer e não conseguir.

            Jesse entendeu. O plano não era matá-los a todos, era apenas matar aqueles que eles mais amavam. Tudo até ali foram mentiras; tudo o que ela dissera ou fizera tinha sido ilusões, areia atirada para os olhos. Os sentimentos haviam levado a melhor. Sem eles, Jesse teria percebido que aquilo que Jacqueline queria fazer era apanhá-los desprevenidos, quando estivessem demasiado ocupados a salvarem-se uns aos outros. Ela sabia que ele viria ao encontro de Violet, e que assim teria a oportunidade perfeita para, finalmente, a matar.

            Jesse levantou o rosto e observou-a, com uma expressão de dor e lágrimas a correrem-lhe dos olhos.

            - Jacqueline, como foste capaz? Como foste capaz?!

            - Eu recolho as minhas dívidas com juros.

            Sorrindo, guardou a arma no coldre que lhe pendia do ombro.

            - Eu pensei que tinhas salvação, Jacqueline, que ainda era possível fazer alguma coisa. Mas estava enganado. Tu estás, definitivamente, louca.

            - Oh, Jesse, que ingénuo. Claro que estou louca.

            Violet soltou um gemido de tormento. O sangue espalhava-se pelo tecido do vestido, dando origem a uma mancha disforme e encarnada que parecia ter a figura do inferno. Jesse despiu o sobretudo e, com um impulso de força animal, arrancou a manga direita da camisa. Após o ter feito, amarrou-a em volta da cintura de Violet, na esperança que isso estancasse a hemorragia.

            - Tenta salvá-la. Tenta. Mas não acredito que o faças. – disse Jacqueline, ao cruzar os braços alvos – Vou trancar-vos aqui, e a verdade é que ninguém vos vai poder vir salvar. Enquanto vos deixo, vou tratar dos outros que, segundo me parece, estão lá fora à vossa espera. Não percebo como puderam ser idiotas ao ponto de pensar que conseguiam vencer isto. Bem, au revoir.

            Jacqueline levantou a mão num gesto de hipócrita despedida e preparou-se para sair. Mas, no momento em que se ia virar, sentiu algo encostado à parte de trás do pescoço. Não tardou a perceber que se tratava do cano de um revólver. O sorriso desapareceu-lhe do rosto.

            - Acabou, Jacqueline.

publicado por Katerina K. às 14:44

29
Dez 09

             Pela enésima vez, Jacqueline pressentiu que o seu plano ia resultar; a sua maquiavélica complexidade concedia-lhe um carácter infalível. Estava tudo demasiado bem planeado para falhar, demasiado bem traçado, com todos os detalhes alinhados e em controle. Na escuridão do corredor que levava à cave, Jacqueline sorriu. Caminhou lentamente sobre a pedra, deixando as réstias de luz para trás e abafando o som do cliquetear dos saltos.  Aproximava-se o final do plano, tal como o fim do caminho. A luz dourada da vela que deixara acesa na cave formava um semicírculo no chão revestido por granito gélido. Cautelosamente, atravessou a passagem. O movimento do seu corpo não emitiu qualquer som, e ela manteve-se invisível nas sombras. Girou os calcanhares e encostou-se à parede onde a pesada porta de metal tinha sido brutalmente encostada. Jacqueline fechou os olhos e inspirou fundo. Ao extinguir a visão, todos os outros sentidos de apuraram imediatamente. Um odor singelo a colónia de homem fustigou-lhe as narinas, as quais se contraíram imediatamente. Jesse Stone estava na cave e essa conclusão foi confirmada quando ela ouviu a sua voz, grave mas nervosa, do interior do compartimento. Os seus lábios contraíram-se num quase sorriso, que se apagou de imediato. O segundo acto ia ter início.

            Lentamente, dispôs-se no rectângulo que a ausência de porta formava na entrada para a cave. Não estava, no entanto, preparada para a visão que se lhe era apresentada. Jesse Stone, ajoelhado no chão sujo e húmido, beijava calorosamente Violet Simmons, a qual, nos seus braços, depositava toda a confiança. Ela não havia morrido, não havia desistido.

            - Bem, - disse Jacqueline – que resistente que és, Violet.

            Jesse levantou a cabeça e estreitou o corpo da rapariga contra o seu peito.

            - Jacqueline. Não podes apenas desaparecer de vez?

            Ela sorriu.

            - Eu desapareci durante cinco anos. Agora, só planeio fazê-lo de novo quando tiver recolhido todas as minhas dívidas.

            Violet tossiu em seco, e a sua boca foi invadida por um sabor a fuligem. Levantou o rosto e fitou Jesse. O que viu no seu olhar não a confortou – um medo terrível começava a espalhar-se por ele, e a sua pele começava a ficar gelada, como se Jacqueline o estivesse a matar apenas com palavras.

            - Jesse, diz-me, – proferiu ela, com um pingo cruel a enegrecer a sua voz – morrerias por ela?

            Ele fitou-a, em silêncio, com os lábios entreabertos, parecendo um boneco de cera. Raoul tivera razão, nada a podia parar. A sua retorcida perversidade e imprevisibilidade faziam de Jacqueline Soleil a pessoa mais letal que ele alguma vez havia conhecido. Os seus olhos tinham a cor do veneno.

            - Eu sei que morrerias por ela. Sei que ela é o que tens de mais precioso, e que lutarias até ao fim para garantir pela sua sobrevivência. Mas estamos aqui, frente a frente, e eu posso fazer qualquer coisa sem que possas impedir-me. Eu sou a porta de saída. Sei que preferirias morrer a que ela morresse. Já estive na mesma posição, pronta a dar tudo por alguém, a deixar o mundo para trás desde que o tivesse. No entanto, as coisas não são assim tão simples. Vivemos em ilusões, e as minhas dissiparam-se muito cedo. Eu só tinha quinze anos, merecia viver mais algum tempo. Mas não vivi. É como se estivesse no corpo de outra pessoa sem realmente estar. – fez-se silêncio por um momento, e ela levantou o olhar para perfurar Jesse com ele – E tu morrerias por ela. Na verdade, é o que queres que aconteça. Sei que, se te matasse agora e a deixasse viver, irias feliz para o outro mundo. É por isso que não te vou matar, Jesse.

            Nesse momento, Jacqueline empunhou uma Nagant M1895. O seu brilho opaco reflectiu-se nos olhos de Jesse, o qual, imóvel, compreendia as palavras de Jacqueline.

            - Adeus.

Com um clique, ela premiu o gatilho e o projéctil voou, em brasa, pelo ar escurecido. Jesse sentiu, imerso num terror incapacitante, a bala a entrar no corpo de Violet Simmons.

publicado por Katerina K. às 20:33

27
Dez 09

             Jesse tomou Violet nos braços. A pele dela estava gélida e pálida, sem cor nem vida, como se a sua essência tivesse sido sugada e varrida. Ele segurou-lhe na cabeça e agitou-a levemente, como se tivesse medo de a partir. Uniu o indicador e o médio, encostando-os à fria superfície da pele do seu pescoço. Nenhum batimento cardíaco se manifestou.

            - Violet? Violet, abre os olhos.

            No entanto, ela manteve-se imóvel e fria, parecendo uma boneca de porcelana branca e frágil. Jesse apanhou-lhe o cabelo com as mãos e pôde ver o grande número de equimoses roxas que se estendiam pelo pescoço dela. Os pulsos eram apenas cobertos por uma camada de sangue seco e castanho, tal como a fita de plástico que lhe prendia os movimentos. Alva e serena, a rapariga descansava nos braços dele como se estivesse apenas a dormir, num sono débil e delicado. A beleza não fugira com a vida, havendo-se mantendo harmoniosa e perfeita, com uma expressão de paz impressa no rosto. Jesse viu-se avassalado pela sensação de que tinha chegado tarde demais.

            - Bolas, Violet, não me deixes aqui sozinho!

            O seu grito subiu pelas paredes negras e rebentou nos cantos escuros. Ele sabia que a sua fúria não a traria de volta à vida, mas não conseguia controlar a ira que lhe subia aos olhos e ardia nas entranhas.

            Nesse momento, vagarosa e delicada, uma lágrima abriu o seu caminho na pele incolor de Jesse. Quase invisível no negrume, serpenteou no seu curso, fazendo com que o rosto do rapaz parecesse prateado. Contornou melosamente a curva do maxilar, passando por cima da cicatriz que acompanhava a mandíbula. Era a primeira vez que Jesse Stone chorava desde o dia em que deixara Violet Simmons, naquele pátio da AMPW. Sentia que tinha deixado a vida em aberto, que não se tinha despedido dela nem lhe tinha dito a verdade que lhe estrangulava o coração. Lentamente, encostou-a ao seu peito e abraçou-a, sentindo as lágrimas a brotar dos seus olhos como erva fresca primaveril.

            - Fecha-me dentro de ti. Corta-me as raízes e deixa-me crescer na tua água, nas palavras que vêm de ti e são douradas. Fecha-me dentro de ti. Faz de mim a lua e usa-me ao pescoço; doma-me, amansa o leão que vive nos cantos do meu íntimo. Fala-me das coisas que nunca vi, dos momentos que perdeste e não queres encontrar. Fecha-me dentro de ti, e une-te comigo até que sejamos só fumo e réstias de memórias. Funde-te com o meu coração, que é aquele que guardas no bolso da alma.

            O rapaz inclinou a cabeça e, muito suavemente, beijou-lhe os lábios gélidos. Deixou a calidez do seu corpo passar para o dela, numa tentativa vã de resgatar a sua alma da casa dos mortos. Mesmo sem vida, os lábios dela eram cândidos e macios como cetim, exactamente os mesmos que ele se lembrava de beijar há muito tempo, quando o seu amor não era incógnito nem secreto. O seu nariz roçou na pele das maçãs do rosto dela, ao afastar-se. Não havia vida.

Jesse Theodore Stone baixou a cabeça, e quis morrer.

            Então, de súbito, sentiu o peito dela a mover-se contra o seu e o bafo quente de uma respiração ofegante e entrecortada. Por instantes, não acreditou, mas o coração dela batia como as asas de um pássaro jovem, indo ao encontro do seu. Afastou-a de si, e viu o seu rosto a ganhar cor. Demoradamente, as pálpebras dela abriram-se e a sua íris cor de whiskey brilhou com o fulgor de uma vida nova. Violet Simmons sorriu debilmente e entreabriu os lábios pálidos.

            - Tenho o teu coração, Jesse.

            - Fica com ele. – respondeu, sendo avassalado por uma felicidade que julgava não conhecer. O sorriso dela, na escuridão, era a única luz.

publicado por Katerina K. às 18:44

25
Dez 09

            Já nada importava. Os segredos, os planos, as memórias – nada disso interessava face à ideia aparentemente deliciosa de morrer. Mais do que saber que ia morrer, Violet queria que isso acontecesse. Essa sensação era embalada pelo pingar intermitente das gotas provenientes das fugas dos canos que atravessavam a cave, e a sua mente começava a ser inundada por um bruma flutuante. Pensou que era ridículo como as pessoas se deixavam invadir pelo arrependimento quando, afinal, tudo se eclipsava no momento da verdade. Jesse estaria de acordo com isso; ele sempre fora realista, despreocupado com as superficialidades do mundo. No entanto, nunca teria oportunidade de lhe dizer as coisas que guardou dentro de si, de lhe confessar que tinha o coração no bolso e a alma na ponta dos dedos. Nunca lhe poderia dizer que, na verdade, o amava.

            Sentiu, levemente, a alma escapar da sua morada e ficar a flutuar sobre o corpo. Assim, aos poucos, os sentidos corporais foram-se apagando – a visão escureceu, o olfacto mirrou lentamente, o sabor da boca seca extinguiu-se, deixou de sentir a dor nos pulsos e a textura do cimento nas mãos. Apenas a audição se deixou ficar, como sobrevivente, sendo a sua única ligação ao mundo terreno – a única coisa que a impedia de expiar e ir ter com o pai ao mundo dos brancos, como a mãe lhe dizia. Rostos começavam a surgir da escuridão, num tom dourado que ela reconhecia ser a cor do Sol quando se punha entre a fenda dos pinheiros. Viu-se subitamente transportada para o pátio que ligava as torres Norte e Este da AMPW. Pela maneira como o rio corria, lá em baixo, serpenteando entre as margens, Violet percebeu que era Primavera. No entanto, não se recordava daquele dia. Talvez aquilo fosse uma das recordações perdidas, que se encontrava ao se nadar no limbo entre vida e abismo.

Debruçada sobre o muro, uma delgada figura atirava pequenos fragmentos de pedra para a floresta, e estes perdiam-se na escuridão verde da flora. A brisa agitava a fralda da camisa bege, a qual, amarrotada, pendia por fora das calças de ganga como se não tivesse mais para onde ir. Debaixo da cálida luz do pôr-do-sol, os seus cabelos albinos refulgiam como cristais de neve. Acompanhando a brisa, o seu rosto deslizou para o lado direito, e o seu perfil ficou recortado contra a quente tonalidade do céu. A luz atravessou-lhe os olhos e concedeu-lhes um tom cor de pêssego. Sorriu.

            - Jesse. – proferiu Violet Simmons, e as palavras saíram-lhe como num desabafo.

            - Anda aqui. – disse ele, com um gesto gracioso.

            Ela aproximou-se, e Jesse pegou-lhe na mão.

            - Sabes, sempre quis ter uma pele como a tua, que não ficasse vermelha e inchada quando está um sol radioso, e que tivesse cor.

            - A tua pele tem cor, Jesse. Parece feita de pérola.

            Ele ergueu o olhar e aproximou o seu rosto do dela. Violet sentiu o hálito fresco dele a fustigar-lhe a pele dos lábios e a gelar-lhe as maçãs do rosto.

            - A minha pele é mais mármore que pérola, Violet. – afastou-se sem a beijar – Vem, está quase na hora de jantar.

            - Jesse?- perguntou ela, fragilmente.

            - Diz-me.

            - Nunca me abandones.

            - Abandonar-te? Só se fosse idiota.

            Aquela memória era bela, daquelas que se guardam como tesouros e sobre as quais se escrevem histórias. Abandonar-te? Só se fosse idiota. Violet soube que, se pudesse, choraria. Ele não mantivera essa promessa; fora-se embora, mudara, e agora que o tinha de volta, não tinha a certeza se ele manteria a jura antiga. Provavelmente não.

            Assim, Violet deixou a última réstia de vida escapar do seu corpo. Jacqueline não precisara de a matar, pois sabia que ela morreria por si mesma, conformada com o seu destino e com as coisas que deixava para trás. À medida que ia morrendo, o calor abandonava o seu corpo e a cor escapava-se para o negrume.

            Então, ouviu a voz que lhe aqueceu a alma.

            - Violet?! Não! 

publicado por Katerina K. às 17:31

24
Dez 09

             - Jesse, é a tua vez.

A voz do pai ecoou entre as paredes do palácio da memória, quente e profunda, no registo grave que Jesse se lembrava tão bem de ouvir, como o rugir de um leão.

            Abriu os olhos. Do lado de fora do alpendre, a chuva caía, miúda, sobre as telhas, emitindo um som oco e cerâmico. O nevoeiro, fino como celofane, planava entre a erva alta e verde, assemelhando-se a fantasmas que o tempo comprimira até serem translúcidos e cinzentos. Estava frio, mas um frio líquido e agradável, que causava uma sensação cortante e deliciosa ao raspar na pele. O Sussex, durante o Inverno, era coberto por uma linha de luz branca e fresca que brilhava em volta do Sol, do qual se via apenas um vislumbre entre os braços das nuvens.

            - Jesse?

            Olhou em frente.

            - Desculpa, pai. – a voz saiu-lhe estranha, aguda e infantil; a sua própria voz quando tinha oito anos.

            - Não há problema. – exibiu um sorriso brando e bondoso – Mas sai do teu mundo e joga.

            Jesse observou o tabuleiro de xadrez e passou lentamente a mão pelo queixo. O pai estava a jogar com as pretas. Percebeu que ele estava a dispor as peças de modo a que Jesse não pudesse mexer o rei. A torre e ambos os cavalos estavam montados à defesa, enquanto que o bispo sobrevivente esperava a sua vez para atacar a presa. A muralha tinha sido cuidadosamente montada, e a rainha, inchada na sua soberba, mantinha-se como expectante, aguardando apenas a sua oportunidade para desferir o golpe final. A única coisa que Jesse podia fazer era furar a armadura e tentar fugir por esse buraco. Só desse modo estaria seguro para atacar pela retaguarda.

 

***

 

            Nesse instante, Jesse percebeu finalmente o plano que Jacqueline havia traçado. Tudo aquilo, toda a ilusão à sua volta, era puro engodo, a maneira de fazer com que ela pudesse chegar a Raoul sem a menor interferência. Jackie fora inteligente, maquiavelicamente inteligente, e soubera manipulá-los de forma discreta e eficaz. Mas Jesse sabia de uma coisa: se Violet Simmons não estivesse já morta, não tardaria muito até que isso acontecesse.

            Levantou-se, fazendo a cauda do sobretudo adejar contra o estofo do cadeirão. Deixou-se fitar o tabuleiro de xadrez que se erguia da escuridão e fez o braço deslizar pelo ar até às pontas dos seus dedos tocarem a superfície gélida do mármore que constituía o rei branco. Passou gentilmente o polegar por ele e depois, num movimento que quase não existiu, mergulhou-o no negrume do bolso do sobretudo. Ia precisar dele, pelo menos para se lembrar que tinha de acabar a sua missão.

            Voltou ao corredor, mas a escuridão havia sofrido uma metamorfose: tornara-se mais pesada, quente, num ambiente de imutável urgência. Era como se Jacqueline suplicasse, por entre cruéis e geladas gargalhadas, que ele desse um salto para o abismo. E era mesmo isso que ele ia fazer.

            Demoradamente, Jesse olhou em volta. Voltou a ser invadido pelo mesmo sentimento de familiaridade que tinha tentado dominar quando atravessara o corredor pela primeira vez. Deixou-se limpar a mente e observou o traçado da casa. Era simples, em recortes harmoniosos e rectos que se abraçavam mutuamente. Contornou o corrimão das escadas e subiu os degraus. Olhando para cima, uma ausência fixou-se na sua mente e Jesse percebeu que aquela casa era uma aproximação extremamente bem conseguida da casa na qual Céline e Jacqueline viveram durante anos. As paredes tinham o mesmo tom cor de profundezas de mar, o qual Jacqueline apreciava especialmente por dizer que a luz do pôr-do-sol fazia sombras particulares naquela tonalidade. Faltava o candeeiro de lustre, transparente como lágrimas, caindo em cascata sem nunca alcançar o chão, mantendo-se fixo no seu ninho de luz dourada. Jesse tentou chamar à mente a planta da casa antiga. Lembrava-se de muitos dos detalhes, mas estes não eram suficientes para formar uma imagem clara do local que ele se preparava para percorrer. Então, como que num acesso de lucidez, entreviu o que Jacqueline tinha pensado. Lembrou-se de um dia de Verão, na casa antiga das Soleil, durante o qual ouvira Céline dizer que aquela era uma das poucas casas em Paris com uma cave subterrânea.

publicado por Katerina K. às 11:54

22
Dez 09

            - Senta-te. – disse ela, num tom de voz calmo e melodioso, acompanhado por um gesto lânguido que a sua mão descreveu.

            Jesse obedeceu, acomodando-se no cadeirão que se apresentava do lado oposto do tabuleiro de xadrez. Jacqueline entrelaçou os dedos e pousou as mãos no regaço. Algo no seu olhar sugeria que ela estava a divertir-se com toda aquela situação.

            - Tens uma reputação fantástica, Jesse. – ela pronunciou o nome dele, acentuando cada letra, como se estivesse a tomar banho nele.

            - Ora ainda bem. – respondeu, à medida que as palavras batiam em retirada.

            - Tens mesmo. Confesso que dediquei algum tempo destes anos a estudar-vos. Como é óbvio, não queria ter surpresas desagradáveis quando vos recebesse. Tu, claro, não foste excepção. És uma pessoa fabulosa, psicologicamente. Tens um controlo excepcional de ti próprio, apanhar-te em falso é praticamente impossível. No entanto, não deixei de encontrar algumas coisas interessantes sobre ti.

            Jacqueline inclinou-se sobre o tabuleiro e fechou os dedos sobre o rei branco, levantando-o à altura dos olhos.

            - Nasceste no Sussex, no meio das árvores e do verde. Branco como a luz era o que dizia a tua avó, não era? Deve ter sido fabuloso, crescer num ambiente daqueles. Sempre foste uma criança fora do normal. Nunca pudeste estudar fora de casa, já que a tua mãe morreu pouco depois de nasceres e o teu pai era professor de violoncelo. Foi aí que começou a paixão, não foi? Só posso imaginar, porque uma situação dessas é-me totalmente estranha. A tua vida até aos quinze anos é muito vaga, e foi muito difícil encontrar qualquer tipo de informação sobre ela. Mas, claro, a partir do teu décimo quinto aniversário, as coisas tornaram-se muito mais claras. Começaste a ganhar fama. Eras o melhor amigo do Edward Cole, tinhas as melhores influências e os melhores contactos. A tua relação com a Violet, uma jovem estrela em ascensão, contribuiu para que a tua reputação se fosse estabelecendo. Mas esse ano também foi o mais turbulento de todos. Nesse Verão, vieste para o Le Château. Foi aí que te conheci. Ainda não tinhas essa cicatriz horrível a desfigurar-te a mandíbula. Custa-me a acreditar que tenha sido o Edward a fazer-ta, mas a verdade é que foi. Nesse fim de Verão, saíste da AMPW e ingressaste na School of Arts. Transformaste-te numa pessoa totalmente diferente.

            - Também tu, Jacqueline.

            - É verdade, sim. Mas tu, tu mudaste completamente. Cortaste ligações com o mundo, isolaste-te num grupo estranho de amigos. Mas a verdade é que foi nesse período que te definiste como violoncelista. Nunca ouvi Bach como tu o interpretas. Lembro-me de uma tarde, no auditório do Le Château, quando te ouvi a tocar o Prelúdio da Suite número um. Simplesmente fabuloso. Era como se cantasses cada nota e eu as ouvisse a todas claramente a dançar umas com as outras. Tinhas um Montagnana, um belíssimo instrumento.

            - Tinha, e ainda tenho. Mas Jacqueline, não vim aqui para falarmos de mim. Vim aqui porque quero que libertes a Violet e a Leah.

            Por momentos, Jesse pensou que ela se ia rir. No entanto, manteve-se apenas a sorrir cinicamente.

            - Vou libertar a Leah, eventualmente. Ela é tua irmã, entendo a tua preocupação. Mas não percebo o porquê de estares apreensivo em relação à Violet. Afinal, passado é passado.

            - Oh, Jacqueline. – repondeu ele, soltando uma risada – Esse não é o melhor caminho. Logo tu, a dizeres isso. – estendeu o braço e puxou o rei branco de entre os dedos dela, fechando-o dentro da sua própria mão – Se passado é passado, porque não deixas as coisas como estão e paras com este plano doido? Já viste bem o quão hipócrita estás a ser?

            - Eu? Hipócrita? Bravo, Jesse, é a primeira vez que tens a coragem de me dizeres na cara o que realmente pensas de mim. – inclinou a cabeça num gesto cínico e juntou as mãos como em oração.

            - Nunca escondi nada de ninguém. Tu sabias bem o que eu pensava de ti. Nunca precisei de te dizer, porque para bom entendedor meia palavra basta.

            Pousou lentamente o rei branco sobre o tabuleiro, terminando a sua argumentação com um movimento nobre no qual levantou o queixo e se recostou no cadeirão.

            - Vais morrer, Jesse. – disse ela, sorrindo.

            - Tens a certeza?

            Num movimento rápido, Jesse baixou o olhar para o cós das calças e retirou a Smith & Wesson do seu local de descanso. O metal soltou um silvo e brilhou orgulhosamente na luz quente do fogo.

            Mas quando Jesse levantou a cabeça, Jacqueline tinha desaparecido. 

publicado por Katerina K. às 14:19

20
Dez 09

             Jesse olhou o beco que se estava a preparar para atravessar. Ouvia o pingar de um cano a formar uma poça no cimento, as patas de um gato e deslizar agilmente sobre os sacos de plástico que se espalhavam pelo chão nas redondezas dos caixotes do lixo, o som do vento a assobiar entre os tijolos e os degraus das escadas de emergência. Nada daquilo o intimidava, nem sequer o brilho amarelo dos olhos de um morcego que se dependurava de um parapeito. O que o assustava era aquilo que ele poderia encontrar do outro lado do caminho.

            À medida que caminhava e as botas chiavam contra o cimento, foi apertando mais a Smith & Wesson dentro da mão. Atravessou o beco silenciosamente e encostou-se à parede da esquina antes de a dobrar. Viu que um outro caminho perpendicular de estendia na escuridão, perdendo-se no meio de algo que Jesse presumiu ser um luxuriante jardim. Fez o cano do revólver roçar na pedra da parede e grãos de areia caíram no chão fazendo ricochete para todos os lados. Avançou na penumbra, com o braço a roçar na parede como apoio. Não tardou a sentir o cotovelo embater numa estrutura metálica que ele percebeu ser o corrimão das escadas traseiras. Içou-se até o seu pé embater na superfície do primeiro degrau. A porta traseira estava aberta. Jesse não esperava outra coisa, tendo em conta que já sabia que ela aguardava a sua chegada.

            Jesse fechou a porta atrás de si com um clic, e mergulhou-se na escuridão do corredor que se espraiava na sua frente como água sobre um espelho. Reconheceu o cheiro doce a orquídeas que se aproximava dele. Jacqueline Soleil sempre tivera um estranho amor por orquídeas brancas, perdendo-se nas suas pétalas e no seu aroma como quem se perde entre braços e calor humano.

            Ouviu um ranger, e rapidamente levantou o revólver à altura do peito, descrevendo uma volta completa sobre si próprio. Notou que, pela frincha de uma cortina, entrava um fio de luz prateada. A lua estava cheia, soberba e redonda, rebentando em cristais bruxuleantes que tinham o nome de estrelas. Era essa luz, gelada e cortante, que guiava Jesse no negrume. Calmamente, o rapaz foi percorrendo o corredor, com os sentidos aguçados e o coração parado no peito. De forma lenta e gradual, apercebeu-se que o traçado daquele corredor não lhe era estranho. Algo naquela casa, nas paredes, nos sons, lhe mexia com o íntimo. Havia memórias espalhadas pelo chão, como neve.

            Do silêncio, da escuridão prateada, nasceu uma porta. Por baixo dela, tremeluzia uma claridade cor de fogo. Jesse guardou a Smith & Wesson no cós das calças e parou um instante para pensar. Conseguia ouvir o crepitar das labaredas e os estalidos da madeira; a lareira encontrava-se acesa, e uma brisa cálida passava por baixo da porta. Já habituado à escuridão, Jesse fechou ou olhos e abriu-a.

            No centro da sala, erguia-se um tabuleiro de xadrez. As peças estavam dispostas sobre a superfície quadriculada, com a sombra das chamas a adejar no seu exterior.

            E ali estava ela, Jacqueline Soleil, propagando na escuridão a sua beleza fria e cortante, que fazia os olhos doer. Os cabelos caíam-lhe naturalmente pelas costas e pelo peito, em longos fios negros que pareciam refulgir com as labaredas.

            - Jesse Theodore Stone, há quanto tempo.

            Levantou os olhos, de um violeta pulsante e sem fundo, pousando-os em Jesse. Nesse momento, ele soube que, independentemente do que fosse acontecer durante aquela noite, só um deles sairia dali vivo.

publicado por Katerina K. às 20:03

18
Dez 09

             Edward juntou as mãos em concha e expirou para dentro delas. A noite caíra, em Paris, e os candeeiros brilhavam como faróis dourados. Danny olhou o relógio, estava na hora. Mentalmente, Edward recapitulou para si mesmo os passos do plano que Michael tecera em conjunto com Jesse. Era terrivelmente simples, básico, até; por isso mesmo, podia ser que resultasse. Ela ia, com certeza, estar à espera deles.

            Ao longe, a figura espectral de Jesse apareceu difusa na escuridão. Foi-se aproximando, como amálgama de escuro e claro, confundindo-se consigo mesmo e camuflando-se na negrura das paredes nocturnas. Caminhava firmemente, enxotando folhas mortas com as Doc Martens. Não se sentia particularmente nervoso, mas uma certa ansiedade agitava-se levemente dentro de si como asas de pássaros. Percorreu a rua com o olhar, certificando-se que tudo estava exactamente como ele esperava que estivesse: perfeito. A estrada era ladeada por duas filas de candeeiros altos de ferro com corpos finos e retorcidos sobre si mesmos, como num quadro surreal. Dentro de uma caixa de vidro, uma bola dourada brilhava no topo do caule metálico. Aquela era uma rua triste, marcada pelo cinzento da pedra dos edifícios, manchados da chuva, como se chorassem das janelas e estas fossem olhos.

            - É aquela? – perguntou Edward, apontando para uma casa estreita do estilo Eduardiano.

            - Sim. – respondeu Danny, soltando uma nuvem de condensação pela boca.

            Michael dissera-lhes qual era a casa, a única casa, em Paris que estava no nome de Cornélia. Jesse sabia que ela nunca tivera uma casa em Paris, portanto fora fácil entender que aquela era mais uma das pistas perversas deixadas por Jacqueline. De certa forma, era impossível acreditar que algo de terrível se estivesse a passar naquela casa; a rua estava tão calma, tão silenciosa, que Edward conseguia ouvir claramente a voz da consciência. O som dos passos de Jesse soou horrivelmente ampliado, chegando aos ouvidos do pianista como um eco das profundezas do mar.

            - Boa noite.

            Danny assentiu com a cabeça e puxou a gola do casaco para cima, consultando de novo o mostrador do relógio. O ponteiro dos segundos movia-se com uma firmeza dura e irreal. Faltava um minuto.

            Edward lançou um esgar retorcido a Jesse, o qual se havia encostado a uma esquina, a fumar um Sobranie. Havia algo nele, no seu olhar, que fez Edward duvidar do lado do qual o outro estaria. Ouviu-o inspirar fundo e expulsar o fumo branco pelas narinas pálidas. Este ascendeu calmamente, numa névoa, sendo atravessado pela luz dourada dos candeeiros, e formou uma cortina em frente aos olhos de Jesse. A sua pupila, cheia de um vapor negro e flutuante, ocultava a íris descolorada, fazendo com que Jesse parecesse ausente. Na verdade, ele observava a casa. Sabia que era ali o refúgio de Jacqueline, o sítio onde ela montara as armadilhas e onde eles tinham de levantar a guarda para todo e qualquer sinal que trouxesse o augúrio de perigo. No entanto, tinham de se sujeitar a isso. Conhecendo-a, Jesse sabia que ela planeara todos os detalhes cuidadosamente, para que nada falhasse no cenário final. Sabia também que Jacqueline saborearia aquilo como a uma peça de teatro, dispondo as peças como se ela fosse o mestre e eles as marionetas.

            A mandíbula de Edward endureceu quando viu a sobrancelha direita de Danny ascender e formar um arco quebrado. O tempo tinha-se esgotado, e estava agora tudo em marcha. O minuto passara com o vento, a hora chegara.

            Jesse sorriu. O primeiro acto havia começado.

publicado por Katerina K. às 21:49

14
Dez 09

            Jacqueline passou o indicador na linha da pálpebra para retirar uma minúscula poeira de eyeliner. Passou a mão direita, gentilmente, por cima da chama da vela, sentindo a calidez que provinha do pequeno feixe luminoso. Este reflectiu-se nos seus olhos e deu-lhes um brilho surreal.

            - Sabes, Violet, eu, no fundo, sabia que o Paul Carter ia mandar alguém para me matar. Eu sabia dos assaltos dele, dos crimes dele, e ele não me ia deixar viver enquanto eu soubesse essas coisas. No dia em que supostamente morri, a Cornélia estava em minha casa. Ela sabia de tudo, tal como a Leah. Na noite anterior, eu tinha recebido um bilhete do Carter, a pedir-me para ir ter com ele ao sítio onde ele costumava ter as reuniões com os capangas, na Avenue Noire. Dizia que queria resolver as coisas. – sorriu ironicamente – Pois, claro! Eu nunca fui idiota, muito menos crente, e percebi que ele me ia matar, ou pelo menos mandar alguém fazê-lo.

            Violet engoliu em seco.

            - Mas não matou, tu estás aqui.

            Jacqueline levantou o olhar e cruzou as pernas. O seu sapato de verniz refulgiu à luz da vela.

            - Não foi a mim que ele matou.

            Violet Simmons ficou, por um instante, a pensar no silêncio e a ver as palavras desaparecer. Chamou à memória o dia em que tinham todos estado junto à campa de Jacqueline, quando o único som presente era o de Jesse a expelir o fumo do cigarro pela boca. Jesse. Mas, sendo verdade o que Jackie dizia, tinham prestado respeitos a alguém que não era ela, a alguém que estava enterrado com o nome errado; alguém desaparecido nas sombras.

            - Cornélia…foi a Cornélia que morreu.

            - Sim. – Jacqueline acendeu um cigarro pequeno e expulsou o fumo pelo nariz – Foi ela. A Cornélia queria ajudar-me, ir por mim ao encontro com o Carter. Como é óbvio, eu não queria deixá-la fazê-lo, mas ela sempre foi a mais teimosa de nós as três, e acabou por ir, mesmo sem o meu consentimento. Pintou o cabelo de preto, mascarou-se de mim. Levou a minha carteira e as minhas roupas. Na verdade, estava extremamente parecida comigo. Só quem a visse de muito perto perceberia que não era, realmente, eu.

            - Então foi assim que o Raoul não percebeu que o corpo era a Cornélia?

            - Exacto. Para além disso, ele estava muito alterado, o que não proporciona as melhores condições para uma visão exacta.

            - E depois, o que fizeste durante os dois anos seguintes? Porque é que não voltaste para casa?

            Jacqueline não respondeu imediatamente. Parecia perdida, desligada, envolta em recordações. Imóvel como uma estátua, começou a entreabrir os lábios, e destes voaram lentamente palavras baixas e tristes.

            - Não consegui. Foi mais forte que eu. Eu não era capaz de enfrentar a minha irmã, de enfrentar o Raoul. Ninguém me ia compreender, ninguém ia perceber a minha dor.

            - Então preferiste causar dor aos outros?! Desculpa, Jacqueline, mas isto é patético.

            - Patético?! Experimenta a minha situação, põe-te no meu lugar! A minha melhor amiga tinha sacrificado a vida dela por minha causa, por uma arrogância minha. A Cornélia morreu porque eu não fui corajosa e ousada o suficiente! Achas que eu podia voltar para casa e sujeitar-me à rejeição de todos? Fiquei dois anos a viver como incógnita num abrigo para artistas. Lentamente, fui recuperando, aprendendo a viver com a culpa. Ela, com o tempo, tornou-se mais leve. Em Dezembro de 2006, decidi voltar. Arrumei as minhas coisas, despedi-me de quem tinha ajudado, e voltei ao Le Château.

            - E não te reconheceram? – perguntou Violet, franzindo o sobrolho.

            - Não. – respondeu a outra, placidamente – Por incrível que pareça, não. A verdade é que eu tinha crescido e mudado muito, inclusivamente cortado o cabelo. Já não era a mesma miúda pateta, era uma mulher. Quando cheguei, perguntei pelo Raoul. A reposta que me deram foi quase automática, lembro-me muito bem. «O Raoul Lewis já não estuda aqui».

            - Mas porque voltaste nesse Dezembro e não noutra altura qualquer?

            - Por causa do Concurso. Eu sabia que iam estar todos reunidos, e queria ver-vos. Mas isso acabou por ser a minha perdição. Chegou o primeiro dia, e eu escondi-me para vos ver. Esse foi o meu erro. Vi-o, com ela. Estavam felizes. – as palavras dela eram um misto de fumo e voz – Um a um, reparei que vocês estavam em Paris como se nada ali se tivesse passado. Mas isso nem foi o que mais me magoou. Quando o Danny começou a investigar a minha alegada morte, o Carter apercebeu-se. Eu soube que era apenas uma questão de tempo até ele decidir fazer-vos aquilo que tentou fazer-me a mim. Deixei-vos pistas, provas. Mesmo assim, vocês não se aperceberam que eu estava viva. Cheguei a chamar por vocês, no cemitério, mas todos pensaram que era ilusão. Fiquei destroçada, destruída. Nunca pensei que vocês, especialmente o Raoul, me fossem esquecer tão depressa. Durante os três anos seguintes, quis vingança. Quis que vocês passassem pela mesma dor do esquecimento. Planeei tudo, todos os pormenores. Eu sabia que o Raoul vos ia chamar mal eu desse sinais de vida. E assim foi.

            Violet abanou a cabeça, tristemente.

            - Jacqueline, tu dizes que fomos egoístas, que te deixamos na escuridão e na solidão, mas tu estás a fazer-nos o mesmo. Estás a tornar-te naquilo que mais odeias.

            - Ele trocou-me, Violet! Ele substituiu-me, mesmo depois de me ter prometido que era para sempre! Isso a mim soa-me a mentira.

            - Jacqueline…

            Ela levantou-se, e a sua raiva transformou-se em fatal seriedade. Os seus olhos deixaram de refulgir, adoptando um brilho opaco e uniforme.

            - Já chega, Violet. Está na hora de dizer adeus.

 

publicado por Katerina K. às 15:10

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