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05
Nov 09

            Leah afastou-se para contemplar a sua mais recente obra. Ergueu o indicador para limpar uma gota de tinta carmim que descia teimosamente ao longo do rebordo da tela. Estava óptimo, Michael havia de ter ficado orgulhoso dela. Esfregou o dedo no avental toldado de rajadas coloridas e pousou a paleta velha sobre a cómoda, depositando os pincéis sujos nos frascos de compota cheios de água.

            Leah Stone vivia em Dijon, numa modesta casa branca de dois andares que lhe satisfazia todas as necessidades. O edifício ficava do outro lado de uma praça ampla e redonda, no centro da qual uma fonte com uma estátua de bronze esguichava parábolas de água fresca para um lago translúcido murado a granito. O céu azul apoiava os alicerces nos telhados inclinados das casas vizinhas e descrevia um arco em forma de cúpula renascentista sobre a praça, morrendo numa rua qualquer sem placa. Apesar de tudo, Leah sentia falta do tempo chuvoso de Londres, dos nevoeiros cerrados e Verões húmidos.

            A chaleira assobiou irritantemente, soltando um pálido fio de vapor que formou uma coluna de condensação no azulejo. Leah apanhou o longo cabelo castanho na nuca, atravessou a sala alcatifada e calçou os sapatos para entrar na cozinha. Pela única janela, um raio de luz incidia na mesa das refeições após atravessar as cortinas. A rapariga, num calmo movimento, cobriu o fundo da caneca com folhas de chá enegrecidas, acabando por as envolver num manto líquido de água quente. Esta, aos poucos, foi sendo tingida de um tom arroxeado à medida que soltava uma deliciosa fragrância a frutos silvestres e a bosque. Leah sentou-se à mesa, beberricando hesitantemente o fluído. Aquele sabor lembrava-lhe a casa da avó Muriel, tardes de Outono e biscoitos caseiros, a luz dourada do campo e o riso ventoso de Jesse. Jesse. O seu rosto albino brilhou na claridade da memória como se tivesse luz própria. Já não o via há quantos anos? Dois? Não mais que três. Sentia a sua falta. Sempre tivera vergonha de admitir a doce atracção que ele exercia sobre ela, apesar de serem irmãos adoptivos. Toda a sua figura exalava escura confiança e poder, mesmo em criança. Esse domínio, precoce e arrasador, fez dele um maciço de personalidade e obscuros contornos. Nunca tivera barba, e o seu rosto branco aparecia como um espectro nos seus sonhos. A última vez que o vira, em Paris, amargurara-a. Gostava de lhe poder contar tudo o que sabia, as palavras em fuga que se lhe cravavam no peito insistentemente e lançavam sabor azedo sobre si mesma. Gostava que certas coisas caíssem na escuridão do esquecimento e não fossem mais que passado. No entanto, certas coisas não eram para ser ditas.

            Tocou a campainha, num pio intermitente que tremia nas paredes.

            A rapariga, ainda de olhos baixos, pensando nas coisas proibidas, abriu a porta. Do outro lado, ouviu o vento a roçar-lhe nas orelhas e uma voz familiar que lhe soava estranhamente nova:

            - Olá, Leah.

publicado por Katerina K. às 22:59

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