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Out 09

Jesse despiu a camisa e, prostrado na cama com os braços abertos, decidiu fazer a viagem que há muito andava a adiar. Fechou os olhos, deixou a brisa fresca outonal que entrava no quarto desde o céu da noite afagar-lhe a pele do peito. Projectou na mente, mais uma vez, o tabuleiro de xadrez. Lá estava ele, com as suas perfeitas e bem delineadas quadrículas de mármore a refulgir à luz da vela. Peão branco para B4. Peão negro para H6. Jogou como se o estivesse a fazer com o pai, no alpendre da casa em Long Island, com a chuva miúda a fustigar as telhas num choradinho brasileiro. À sua volta, o mundo desaparecia. Apagaram-se as luzes longínquas da cidade, calaram-se os estalidos, as vozes abafadas, os passos, deixou de sentir a brisa nocturna e o cheiro a tinta de jornal e cedros que esta trazia. Deixou-se mergulhar lentamente no silêncio e no negrume da sua própria consciência. E só restava o tabuleiro de xadrez, com as imponentes peças a deslizar imperialmente sobre a pedra imaculada. Demoradamente, extinguiu a imagem do jogo e, num exercício mental, pintou na escuridão o jardim do Le Château. Do negro emergiram os ciprestes, as orquídeas altas, os carvalhos, as túlipas, os bem tratados arbustos que se perdiam na sua própria verdura.

Era Maio de 2004, e o sol queimava os trilhos de pedra fosca com a alegria da Primavera que despontava numa luxúria cor de esperança. Jesse olhou em volta; estava lá tudo, tal como se lembrava. Sentada pouco à sua frente, com o longo cabelo negro solto pelas costas, ela cantarolava levemente, na sua tímida e infantil voz de soprano.

- Olá, Jesse. – disse ela, sem se voltar para ele.

- Bom dia, Jacqueline.

- Está um dia verdadeiramente bonito, não achas?

- Acho que sim. Um dia como tu gostas.

Ela soltou uma risada ampla e cuidada.

- Sim, suponho que tens razão.

Ao rodar no banco de granito, Jacqueline Soleil fixou os olhos violetas na espectral figura de Jesse. Era bela, esculpida num pedaço de nuvem, a delicada pele a arrastar-se pelo pequeno nariz arredondado com a resistência de mel. Levantou a débil mão branca e convidou-o a sentar-se ao seu lado com um movimento airoso.

- Jesse, tens medo da morte? – perguntou-lhe ela, não tirando o olhar desabrido do céu.

Ele baixou a cabeça e passou os dedos compridos pelo cabelo despigmentado.

- Não sei. Talvez. Quer dizer, acho que sim. Toda a gente tem.

Jacqueline moveu os olhos para ele, num lânguido gesto de cabeça. Os fios de cabelo esvoaçaram na brisa calmamente, como se flutuassem no fresco ar primaveril.

- Eu não. – sorriu – Gostava de morrer mais do que uma vez. Deve ser magnífico.

Jesse estremeceu na cama, levando o braço ao rosto. Aquela memória, por alguma razão, trazia-lhe uma mágoa que não parecia caber no coração. Sentou-se, afundou as faces na concha que formou com as mãos. Sentia atrás dos olhos o ardor das lágrimas, mas nenhuma humidade se lhe acumulou na linha das pestanas.

- Agora, Jacqueline, vais poder morrer mais do que uma vez.

A porta vibrou com o som que se libertou de uns nós dos dedos a embater na madeira. Jesse levantou-se, esfregando os olhos, e caminhou descalço até à entrada com a bainha das calças a roçar na carpete. Abriu a porta, e o vulto que se lhe apresentou pareceu-lhe aureolado de luz.

publicado por Katerina K. às 20:07

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