BLOG FECHADO

18
Out 09

            Danny King, deitado entre os lençóis listados, aproveitava os últimos momentos de conforto na cálida ternura da cama. O quarto, banhado pela azulada claridade da manhã, era tingido por uma camada de espelhada resplandecência. O sol matinal, gelado, atravessou a fenda das cortinas e desenhou um rectângulo na carpete. Edward já estava acordado, sentando-se contra a parede com a partitura da Fantasia Coral de Beethoven sobre os joelhos. O cabelo escondia-lhe os olhos e mergulhava o rosto na sombra, só deixando entrever os lábios, que se moviam apenas levemente ao ritmo do baixo do piano.

            - Estás acordado?

            Edward assentiu, soltando um grunhido grave. Danny sentou-se na cama, puxou o cabelo loiro para trás e pigarreou, brincando com o anel de brasão da família.

            - O que estás a fazer?

            Edward suspirou.

            - A estudar. O professor Harrington ficou furioso comigo por eu ter fugido de Kiev. Quer dizer, afinal deixei uma orquestra inteira pendurada. Mas, no fundo, ele sabe que isto é importante.

            - Tinha-me esquecido disso. Parabéns pelo concurso, já agora.

            O outro ergueu o olhar e sorriu sombriamente.

            - O Chopin? Foi mais fácil do que eu imaginava. Basicamente, reinei. Primeiro, era o mais novo. Depois, era eu que trazia o programa mais ambicioso. Estavam todos…bem…amedrontados.

            - És o meu ídolo, Ed.

            Riu-se, a sua gargalhada rasando a semelhança ao vento.

            - Idolatrar, só a Deus.

            Danny levantou-se, despindo o pijama.

            - O que achas disto da Jacqueline?

            Edward encolheu os ombros, arremessando a partitura para cima do sofá.

            - Acho que há quem saiba mais do que quer admitir.

            Danny anuiu lentamente, levando a mão direita aos lábios, e passou os dedos por eles.

            - Acho, também, - continuou Edward – que podemos fazer algum trabalho investigativo.

            O outro rapaz virou-se bruscamente, arqueando uma sobrancelha de forma desconfiada. Pegou na camisa e atirou-a para as costas.

            - Desculpa, mas não entendo o que quiseste dizer com isso.

            Edward sorriu, e uma covinha arrogante desenhou-se-lhe infantilmente na face. Levantou-se, remexeu dentro da mala, e exibiu um esgar triunfante quando encontrou o que procurava. Ergueu uma fotografia quadrada, na qual se reflectiam os frios raios de sol matinal. Era o jardim do Le Château, rebentando de cor no cerne da Primavera. Sentados junto ao carvalho velho, um grupo de três raparigas e dois rapazes vivia a alegria da sua propositada juventude. Danny reconheceu-os de imediato, a todos.

            - Penso, - proferiu Edward, no tom imperial de quem revelava uma verdade absoluta – que temos de visitar a Leah.

publicado por Katerina K. às 21:57

14
Out 09

            Debrucei-me no parapeito da janela, estava gelado e a pedra húmida. Passei a mão pela sua superfície rugosa e esfreguei as palmas lentamente uma na outra. Faltava pouco para nascer o sol. Uma linha de claridade prateada desenhava-se sobre os eucaliptos ao fundo da estrada. Pequenas gotas redondas deslizaram pela superfície do vidro, desenhando cordões de bagos líquidos luzidios. Girei o manípulo e abri a janela. Na negrura do espartilho bruxulearam diminutos feixes da luz matinal que despontava algures a este, empoleirando-se nos topos dos eucaliptos e dos pinheiros. O céu clareou gradualmente, à medida que a luminosidade lhe estendia os seus mornos braços de fim de Verão. A norte, o baldio ainda estava imerso na treva que se ia dissipando com a chegada da manhã. Do solo seco, emergiam pequenas ervas escuras e ralas, a girar em acanhados vórtices na brisa rasa que acariciava o chão. Esta transportava a fragrância fresca das agulhas dos pinheiros, ainda molhadas do orvalho, a pingar. Ao longe, ouvi o som de cascos de cavalos e o roçar das rodas das carruagens na terra batida. Formavam-se, sobre o tímido brilho da madrugada, nuvens pálidas a desmaiar no horizonte. A estrada já era visível, a entrar pelo matagal que formava um túnel de arvoredo à sua volta, num acolhedor leito de verdes folhas e ramos maleáveis de tão jovens. Longe, onde já se perdia a visão em toda a frondosa verdura, a torre da Igreja erguia-se da clareira. Esbranquiçada, quase trémula sob a luz que a envolvia cegamente, parecia um vestido de baptizado a brilhar com a alegria de um recém-nascido corado.

            O relógio vertical de pinho bateu pesadamente as sete horas, a um compasso metálico que me revibrava no tímpano desconfortavelmente. Finalmente, a orla do sol resplandeceu através dos pinheiros e dos eucaliptos, envolta numa névoa rósea e amarela. Hesitante, bamboleou-se no cume da floresta até assomar imperialmente e cobrir tudo à sua passagem por uma camada de dourada tranquilidade. Já me chegava o cheiro da terra, da flora, o som dos pássaros a agitarem as penas nos ninhos como se as estivessem a vestir. Aproximavam-se as carruagens, ouvi o estalar de um chicote no dorso de um cavalo que corria elegantemente ao longo da aba da floresta. Soube que estava na hora de recolher. Fechei a janela, uma claridade baça revestiu o compartimento de pedra. Deixei a paisagem absorver totalmente o esplendor do alvorecer.

 

 

 

(Texto feito por mim - não pertencente à série - para a Fábrica de Histórias.)

 

publicado por Katerina K. às 20:42

08
Out 09

            - Posso entrar?

            Violet Simmons, envolta num sobretudo cor de amêndoa, observava-o do lado de fora, a ser fustigada pelas luzes do corredor. Por momentos, Jesse deixou-se ficar encandeado pela gentil claridade que ela conseguia espalhar nas suas redondezas. Tinha o cabelo despenteado em selvagens e largos caracóis, os quais se lançavam com avidez para cima do rosto dourado.

            - Jesse? Estás a ouvir? – disse ela, ligeiramente mais alto, mas ainda com o mesmo toque aveludado.

            - Desculpa. Sim, entra, por favor.

            Afastou-se para a deixar entrar, e o magnetismo da sua passagem quase que o atirou para trás da porta. Avançou primeiro a passos largos, os quais foram diminuindo de comprimento e ritmo. Parou no centro do quarto, entre a cama e a cómoda, a observar o compartimento.

            - Isto está escuro como breu.

            Ele sorriu reflexivamente.

            - Ter fotofobia é terrível.

            Ela olhou-o com o arrependimento patente nas feições redondas.

            - Tens razão, desculpa. Já não me lembrava.

            Ele disse que não havia problema, reparando interiormente que não conseguia deixar de sorrir na presença dela. Pediu-lhe que se sentasse, e ela tomou lugar no cadeirão de braços perto da varanda. Após dois agonizantes minutos de silêncio, Violet tomou a palavra.

            - Já sabias, Jesse? – perguntou ela, num tom de voz que trazia a sensação de flores a murchar sobre uma lápide.

            - De quê?

            - Que a Jacqueline estava viva.

            - Não. – respondeu – Mas também não fiquei propriamente surpreendido.

            - Estás a brincar?

            - Achas que brincava com isto? Quando recebi a carta do Raoul, percebi imediatamente que estava alguma coisa errada, muito errada, até. – cruzou as pernas sobre a colcha da cama – Depois de a ler, não tive dúvidas de que aquilo que ele falava tinha alguma coisa a ver com aquele Inverno. Tu conheces o Raoul tão bem como eu, e sabes que ele não é pessoa de entrar em paranóias ou de dar numa de dramático. Ele tem os pés bem assentes na terra, e para ter entrado naquele estado de desespero, alguma coisa mesmo grave tinha de se ter passado. E o que é que mexe com o Raoul mais do que qualquer outra coisa? A Jacqueline.

            Violet permitiu-se a um instante de pausa, até as palavras de Jesse e o seu sotaque deixarem de pairar no quarto.

            - Eu nem imagino como a Donna deve estar. – mordeu o lábio inferior com pouca força e largou-o – Saber que a antiga noiva do noivo dela ressuscitou dos mortos deixa qualquer um com a cara à banda.

            Jesse soltou uma gargalhada cruel, apoiando as palmas das mãos nos joelhos.

            - Ela não ressuscitou dos mortos, Violet.

            - Para mim, sim. Quer dizer, ainda não temos a certeza absoluta de que ela está, realmente, viva.

            - Tens alguma dúvida?! – ele fixou os olhos dela com os seus – Eu não! A reacção da Céline e do Alex falou mais alto. Ela não tinha ficado naquele pobre estado se não tivesse mesmo visto a irmã.

            Violet levantou-se, tirou o sobretudo e encostou-se ao vidro da janela, cruzando uma perna atrás da outra num movimento elegante de garça. Ficou séria, mas os olhos cor de caramelo transportavam uma certa doçura.

            - Lembras-te o que nevava, aquele Inverno, Jesse? Lembras-te da Avenida do Triunfo totalmente branca?

            Ele, cabisbaixo, respondeu que sim. Lembrava-se perfeitamente, a imagem continuava fresca na sua memória. Violet passou a mão pelo rosto.

            - Queria voltar a esse dia.

            Nesse momento, ele quis abraçá-la. Era a primeira vez que tal impulso o dominava por completo, em toda a sua amplitude. No entanto, manteve-se no mesmo lugar, cingindo-se a observá-la e a recordar como era quando sentia o calor dela entre os seus braços.

            Lá fora, a noite estava limpa e fresca, típica do Outono, com a aragem semi-gélida a traçar a escuridão num laivo de frio. Bruxuleavam sobre os edifícios pequenas luzes cor-de-laranja e prateadas que pareciam velas a resistir ao vento forte. No céu, não havia estrelas, apenas farripas róseas de nuvens desintegradas.

            Violet esfregou as mãos uma na outra, e o seu bafo quente regelou na superfície do vidro.

            - Mas o que realmente me incomoda é outra coisa.

            Jesse levantou-se, cruzando os braços sobre o forte peito desprovido de melanina, pálido de morte.

            - O que é, então?

            Ela fez uma pausa, respirou, e falou-lhe como se fosse proibido:

            - Se a Jacqueline não morreu, então quem morreu no lugar dela?

 

publicado por Katerina K. às 18:59

07
Out 09

Jesse despiu a camisa e, prostrado na cama com os braços abertos, decidiu fazer a viagem que há muito andava a adiar. Fechou os olhos, deixou a brisa fresca outonal que entrava no quarto desde o céu da noite afagar-lhe a pele do peito. Projectou na mente, mais uma vez, o tabuleiro de xadrez. Lá estava ele, com as suas perfeitas e bem delineadas quadrículas de mármore a refulgir à luz da vela. Peão branco para B4. Peão negro para H6. Jogou como se o estivesse a fazer com o pai, no alpendre da casa em Long Island, com a chuva miúda a fustigar as telhas num choradinho brasileiro. À sua volta, o mundo desaparecia. Apagaram-se as luzes longínquas da cidade, calaram-se os estalidos, as vozes abafadas, os passos, deixou de sentir a brisa nocturna e o cheiro a tinta de jornal e cedros que esta trazia. Deixou-se mergulhar lentamente no silêncio e no negrume da sua própria consciência. E só restava o tabuleiro de xadrez, com as imponentes peças a deslizar imperialmente sobre a pedra imaculada. Demoradamente, extinguiu a imagem do jogo e, num exercício mental, pintou na escuridão o jardim do Le Château. Do negro emergiram os ciprestes, as orquídeas altas, os carvalhos, as túlipas, os bem tratados arbustos que se perdiam na sua própria verdura.

Era Maio de 2004, e o sol queimava os trilhos de pedra fosca com a alegria da Primavera que despontava numa luxúria cor de esperança. Jesse olhou em volta; estava lá tudo, tal como se lembrava. Sentada pouco à sua frente, com o longo cabelo negro solto pelas costas, ela cantarolava levemente, na sua tímida e infantil voz de soprano.

- Olá, Jesse. – disse ela, sem se voltar para ele.

- Bom dia, Jacqueline.

- Está um dia verdadeiramente bonito, não achas?

- Acho que sim. Um dia como tu gostas.

Ela soltou uma risada ampla e cuidada.

- Sim, suponho que tens razão.

Ao rodar no banco de granito, Jacqueline Soleil fixou os olhos violetas na espectral figura de Jesse. Era bela, esculpida num pedaço de nuvem, a delicada pele a arrastar-se pelo pequeno nariz arredondado com a resistência de mel. Levantou a débil mão branca e convidou-o a sentar-se ao seu lado com um movimento airoso.

- Jesse, tens medo da morte? – perguntou-lhe ela, não tirando o olhar desabrido do céu.

Ele baixou a cabeça e passou os dedos compridos pelo cabelo despigmentado.

- Não sei. Talvez. Quer dizer, acho que sim. Toda a gente tem.

Jacqueline moveu os olhos para ele, num lânguido gesto de cabeça. Os fios de cabelo esvoaçaram na brisa calmamente, como se flutuassem no fresco ar primaveril.

- Eu não. – sorriu – Gostava de morrer mais do que uma vez. Deve ser magnífico.

Jesse estremeceu na cama, levando o braço ao rosto. Aquela memória, por alguma razão, trazia-lhe uma mágoa que não parecia caber no coração. Sentou-se, afundou as faces na concha que formou com as mãos. Sentia atrás dos olhos o ardor das lágrimas, mas nenhuma humidade se lhe acumulou na linha das pestanas.

- Agora, Jacqueline, vais poder morrer mais do que uma vez.

A porta vibrou com o som que se libertou de uns nós dos dedos a embater na madeira. Jesse levantou-se, esfregando os olhos, e caminhou descalço até à entrada com a bainha das calças a roçar na carpete. Abriu a porta, e o vulto que se lhe apresentou pareceu-lhe aureolado de luz.

publicado por Katerina K. às 20:07

05
Out 09

            Raoul corrigiu a sua posição e, lentamente, retirou o revólver do cós das calças, rodando-o demoradamente nas mãos. Era uma .44 Magnum Colt Anaconda de 1990 de coronha negra. Acariciou-a, como se a qualquer momento fosse premir o gatilho. Lambendo os lábios ao de leve, apenas para tentar humedecer as palavras que se preparava para dizer, encostou-se no espaldar no cadeirão.

            - Desculpem lá isto da arma. – suspirou – Ando com ela não tanto por segurança, mas para um certo…como dizer?...conforto espiritual.

            Os restantes baixaram os olhos para o chão, num pesar digno de luto. Após deixar aquela frase em suspenso, Raoul voltou a falar.

            - Vocês costumam ter pesadelos?

            Jesse ergueu subitamente a cabeça para o fitar, com o cenho franzido e os lábios entreabertos.

            - Sabem como é aquela sensação de estar numa determinada situação, querermos sair dela e não sermos capazes, como nos pesadelos? – continuou – Sinto-me assim, agora.

            Jesse suspirou, esfregando os olhos com o punho.

            - Desculpa interromper-te, Raoul, mas não entendo como isso tem alguma coisa a ver com o que nós estamos aqui a fazer ou com a carta que nos mandaste.

            O outro olhou o tecto, mordeu o lábio inferior e expirou lentamente pela boca.

            - Há coisa de um mês, - disse Raoul, nalgo que se assemelhava a um murmúrio – a Don saiu de casa mais cedo do que o costume para ir ao Le Château estudar sem ter ninguém a incomodá-la. Eu pedi-lhe para ela levar a minha flauta ao Alex para ele arranjar uma chave solta. Estava frio, portanto insisti que ela levasse o meu sobretudo comprido, que o dela estava na lavandaria. Entretanto, ela saiu e eu fiquei em casa a acabar um trabalho de História da Música. Fiquei espantado quando a Don voltou dez minutos depois, branca como a cal, a dizer que achava que estava a ser seguida por alguém que chamava o meu nome. Ao princípio, achei que era patetice da parte dela, mas no dia seguinte, quando saí, reparei que estava a ser observado. Não percebi se era um homem ou mulher, só vi um vulto negro que desapareceu um minuto depois.

            Fez uma pausa, ofegante, para recuperar o controlo da respiração. Violet observava-o, com os olhos ambarinos muito abertos, atenta ao que ele dizia mas sem perceber muito bem, tal como Danny, Lancelot e Edward. Jesse, por sua vez, entendeu imediatamente onde Raoul queria chegar. O que ele estava prestes a revelar era, na verdade, grave.

            - Nas semanas seguintes, não voltou a acontecer nada do género, portanto esquecemos aquilo que se tinha passado. Tínhamos mais com que nos preocupar. Mas há semana e meia aconteceu algo pior. Eu e a Don estávamos na aula de Técnicas quando o Alex entra disparado no Auditório, a chamar por nós, afogueado como eu nunca o tinha visto. Fomos até ao gabinete da Céline, e ela estava sentada na cadeira, imóvel, pálida, a hiperventilar. Quando perguntamos o que se tinha passado, ela olhou para nós como se não estivesse a ouvir-nos, mas, depois, disse.

            Todos respiraram ao mesmo tempo, com a tensão a acumular-se no interior do compartimento. As chamas crepitaram, curiosas, na lareira, como se também quisessem saber o que Raoul ia proferir. Assim, depois de um silencioso e pesado momento de mudez, o rapaz concluiu o seu relato, num tom de voz penoso e dorido, que atingiu os outros cinco como um soco no estômago.

            - Ela viu a Jacqueline. A Jacqueline está viva.

 

publicado por Katerina K. às 11:36

04
Out 09

            Jesse não conseguia evitar de se sentir desconfortável, como se o ácido do estômago lhe estivesse a correr pelas veias. Mexeu-se no seu lugar, ao de leve, e recostou a cabeça. Lançou um esgar de olhos semicerrados aos restantes membros do grupo. Lá estava ela, Violet Simmons. Meu Deus, como estava diferente. Continuava incrivelmente atraente, o cabelo da cor das sombras do fogo e os intensos olhos tom de caramelo. No entanto, crescera. Crescera muito. O esbelto vestido verde-escuro realçava-lhe as formas maduras e redondas, adaptando-se à sua figura elegante. Jesse viu-a como se fosse a primeira vez. Mas pareceu-lhe que ela estava tão séria como se fosse a última. Sorriu, e os olhos amarelos sorriram também, em algo incontrolável que ele, hesitantemente, percebeu que era felicidade. Pensara muito nela, naqueles últimos anos, numa mistura de remorso e arrependimento. Guardara o seu rosto no cofre mais seguro da sua memória, abrigando as feições adoráveis que lhe marcavam as faces. No entanto, estava diferente. Tornara-se mulher, e uma bem bonita, por sinal. Mas os olhos, tão doces como da última vez, continuavam a emitir um brilho quase infantil, sempre despropositado.

            Ela pousou o tempestuoso olhar no dele, como se lhe arrancasse os pensamentos. Ele tentou desviar a atenção para outro sítio, mas não conseguiu despregá-la dela. Violet continuava séria, sentada formalmente, com as pernas cruzadas nos tornozelos. Fitou-o com inocência mas intensidade, matando a falta que sentia daquele rosto de albino, parecendo feito de cera. A cicatriz de sempre continuava a demorar-se na cuidadosamente esculpida linha da mandíbula, como um traço de tinta prateada num pergaminho liso. A rapariga sorriu interiormente ao ver a expressão séria que ele exibia. Poucas eram as vezes que era possível ver Jesse Stone, o tão aclamado e negro violoncelista, a mostrar-se totalmente desorientado com uma situação: como naquele momento. A doce fragrância que ele exalava chegou-lhe às narinas numa bruma sensual e invisível. Violet inspirou-a demoradamente, fechando os olhos. Era sacarina, ligeira mas perceptível – exactamente a mesma de sempre, naquela incrível e estranha doçura. Jesse continuava a vestir-se da mesma maneira, completamente de negro, envergando o habitual sobretudo comprido e as Doc Martens, como se fosse um coveiro. Recostado no cadeirão, com os lábios cerrados numa linha severa e suavemente encurvada, era banhado pela quente luz produzida pelo adejar das labaredas na lareira. Violet, envolta pelo mesmo calor, viu-se invadida por uma sensação de tristeza e vazio. Era estranho vê-lo de novo, tê-lo de novo ali perto de si, sentindo a fria aura que ele transportava à sua volta e ouvindo a sua voz, grave e melosa, carregada pelo belo sotaque britânico. Naquele instante, ela gostava de saber o que ele pensava.

            Jesse vergou-se, envolvendo o rosto nas mãos. Sentiu os olhares de Danny e de Edward pousados nele. Eles sabiam. Sabiam o nó que se lhe formava em todo o corpo e a dormência que o invadia. Na verdade, era difícil escondê-lo. Nos momentos seguintes, Jesse limpou a mente e projectou nela a partitura da Sonata Arpeggione de Schubert, enquanto o mundo à sua volta se eclipsava. Quando tudo tinha desaparecido e só restava o escuro e o silêncio, jogou xadrez consigo próprio dentro da alma. Empates sucessivos. Era impossível ganhar a si mesmo.

publicado por Katerina K. às 12:46

01
Out 09

            A noite já se havia cerrado em Paris, e pequenas luzes tremelicavam na imensidão da cidade como olhos, por baixo da roxa escuridão.

            Numa das mais movimentadas ruas da cidade, atrás da cacofonia da civilização e dos flashes dos carros a passar, elevava-se o Le Château, sóbrio, largo e escuro como um bloco de pedra em bruto. O Hall, totalmente iluminado, estava silencioso. Nem uma mosca se atrevia a desfazer aquele ambiente de cortar a respiração.

            De um momento para o outro, sem aviso, o salto alto de uns elegantes sapatos pretos foi reflectido no chão de mármore branco e o som que produziu ecoou por todo o Hall. Atrás destes pés femininos, seguiu-se um outro par, calçado em antigas sapatilhas Converse All Star. Lado a lado, seguiram determinadamente até às portas douradas dos elevadores. Estas abriram-se com um plim suave, e ambas as pessoas desapareceram no seu interior, em direcção ao primeiro andar.

            Pouco depois, novamente o sossego foi perturbado. Uma confusa sucessão de pernas masculinas apareceu na porta giratória e avançou sobre a pedra polida. Só aí se puderam distinguir os três pares que constituíam aquela cachoeira de membros inferiores. Estes voltaram a juntar-se para se dirigirem às escadas, que subiram de uma forma excessivamente saltitante, até ao primeiro andar.

            A Sala Montesquieu permanecia no mesmo lugar, mesmo no centro do edifício, no primeiro andar. Um dos cadeirões, a ser banhado pela luz crepitante do fogo na lareira, era ocupado por Raoul Lewis. Alto, belo como um boneco de porcelana, a pele rósea a ser fustigada por sombras resultantes das ondas da fogueira. O cabelo, mais negro que a noite, tinha sido cortado recentemente e mostrava a sua alta testa lisa. Um disforme abcesso tomava lugar no seu flanco, parcialmente escondido pela fralda da camisa. Era um objecto duro e largo, preso no cós das calças – um revólver. Raoul, na sua silenciosa angústia, via no fogo os rostos que não lhe saíam da mente, os acontecimentos que teimavam em bailar-lhe nos sonhos. Fora num acto de desespero que escrevera aquelas cinco cartas, todas muito semelhantes, e as mandara para quatro locais: Kiev, Detroit, Nova Iorque e Chicago. Esperava que eles chegassem rapidamente, mas nunca parecia ser rápido o suficiente.

            Quando um toro de madeira meio queimado deslizou e estalou alto, faíscas laranjas saltando na lareira, Raoul ouviu o suave roçagar de tecido. Virou-se num gesto lento e cuidadoso, vendo duas figuras escuras recortadas contra a semi-claridade do corredor.

            - Entrem. – murmurou, e voltou a recostar-se no cadeirão.

             Os dois vultos deslizaram sobre a carpete e instalaram-se no círculo formado pela luz emitida pelo fogo.

            - Violet, Lancelot, bem-vindos.

            Os rostos dos dois recém-chegados foram cobertos pela crepitante resplandecência do lume.

            - Olá, Raoul. Estás com bom aspecto. – disse Violet, numa tentativa de estabelecer uma conversa de conveniência.

            - Nem por isso. – sorriu – Mas estou contente por vocês terem chegado. Os outros?

            Violet e Lancelot entreolharam-se.

            Uma voz soou.

            - Aqui.

            Todos rodaram sobre si mesmos. No umbral da porta, estavam os três – Danny King, Edward Cole e Jesse Stone – a observar o interior seriamente. Entraram num andar calmo e pausado, tomando os seus lugares no semi-círculo de cadeirões vazios que os esperavam. Estavam de novo juntos, os seis, e o grupo encontrava-se completo. No entanto, uma neblina indistinta, quase parda, pairava sobre eles como uma sétima presença; uma presença morta, pesada, que não os deixava respirar. Abraçaram o silêncio, num período de mudez semelhante a uma homenagem fúnebre.

publicado por Katerina K. às 23:17

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