Para a Sara, mais uma vez.
O quarto, o meu quarto, cheirava a frutos silvestres, particularmente a amoras. Era um cheiro doce, embriagante e deliciosamente forte. O compartimento era de madeira, forrado com um papel de parede às listas verticais azuis claras e escuras. Existia um toucador em pinho, coroado por um colossal espelho emoldurado a ferro negro, inúmeras estantes, repletas de todos os livros que eu poderia ler na vida, uma secretária discreta que reparei ter sido posta especialmente para mim e dois belos cadeirões brancos Sheraton. Ao fundo, na parede oeste, estava encostada uma magnífica cama de dossel, com as cortinas, de linho semi-transparente, completamente corridas. Da janela, que dava acesso à varada, eu conseguia ver o mar, sobre o qual planava uma névoa púrpura que se estendia ao longo do horizonte.
O Anjo, enquadrado no umbral da porta, observava-me com os braços cruzados e um sorriso no rosto, como se aquilo fosse a coisa mais divertida do mundo.
- Gostas? – perguntou – Era o meu quarto, mas mandei fazer algumas alterações, e agora é teu.
- Era o teu quarto?
Ele assentiu com um gesto de cabeça.
- Onde vais dormir agora?
- Ah, não te preocupes comigo. Eu depois mostro-te.
Avançou gentilmente na minha direcção e indicou-me a varanda. Abrimos o vidro, e entrou para dentro do quarto uma delicada brisa salgada e morna, típica do final do dia. Fomos banhados por uma estranha e escassa luz cor de mel. Ao aproximarmo-nos da grade, o braço dele tocou suavemente no meu, tal como os nossos dedos. Senti um pequeno choque, que não durou mais de um segundo – electricidade estática, pensei – e voltei a dar conta apenas de quão fria estava a sua pele. A vista dali era perturbante, de tão única. Via-se a praia, desdobrando-se pela costa até desaparecer nos píncaros da distância, os rochedos, as dunas, uma pequena cidade na orla de uma enseada distante e, claro, o oceano, reluzindo na luz do entardecer como se diamantes cobrissem a sua superfície. Na areia da praia, um pouco mais à frente, distingui o sítio onde eu e o Anjo estivéramos sentados: dois círculos indistintos, prestes a ser devorados pela água.
- Tudo o que vemos ou nos parece ver não passa de um sonho dentro de outro sonho. – ouvi-o dizer, enquanto levava ao sítio a teimosa mecha de cabelo que insistia em ficar suspensa em frente aos olhos.
- Edgar Allan Poe. – disse eu, reconhecendo a citação.
- Muito bem. – sorriu, lançando-me um esgar – Gosto muito de Poe.
- Também eu.
Estremeci com o grito de uma gaivota, mas ele ficou impassível. Uns segundos depois, ainda estava eu magnetizada pelo pulsar de vida nos seus olhos, ele roçou-se no meu braço, ao afastar-se na direcção da porta e, antes de desaparecer na aparente escuridão do corredor, murmurou alguma coisa.