BLOG FECHADO

10
Set 09

            O apartamento estava imerso num silêncio profundo e delicioso, que se conjugava com a luz fraca que entrava por entre as cortinas ao criar um ambiente de dormente sossego. As sombras flutuavam pelo quarto, contornando a iminente claridade do dia, deixando entrever Holly Golightly, sentada sobre o alvo tecido do seu sofá Chippendale, passando o dedo longo e afunilado pelo bordo do copo onde há pouco se encontrava um martini. Fitava a parede, como se nela existisse um buraco que mostrasse todas as coisas. O seu rosto, tingido por uma brancura sobrenatural, encontrava-se imóvel, limpo, sereno. Os grandes olhos negros, fixos num único ponto, estavam cobertos por uma camada transparente de humidade salgada, uma camada refulgente de cristal polido.

            A luz solar matinal atravessou o Upper East Side, mergulhou através do vidro da janela do grande e luxuoso apartamento de Holly e banhou as paredes por uma cor purpúrea, atravessando o candeeiro Tiffany pendurado no tecto. A mulher humedeceu os lábios, ajustou o roupão de seda e levantou-se, caminhando devagar. Ergueu as mãos, agarrou as cortinas gentilmente e afastou-as. Viu o sol, um enorme círculo fosco e cor-de-laranja, a alçar-se sobre os imensos prédios de Manhattan e a reflectir-se na superfície espelhada do rio Hudson. Na rua, ziguezagueava um prelúdio da confusão que se viria a gerar durante o dia. Ouviram-se passos preguiçosos no andar de cima, e Holly elevou o olhar. Era o vizinho de cima, o homem que chegava tarde a casa e saía ao primeiro raiar da manhã, com uma pasta atafulhada de papéis debaixo do braço e um chapéu antiquado de feltro sobre os cabelos castanhos. Normalmente, não trocava mais do que duas palavras com ele, um Bom Dia ou um Boa Noite, mas Holly não conseguia deixar de sentir simpatia pelas suas feições bondosas, como se fosse pai de alguém. O som de água a correr, uma porta a fechar. Ela pensou que talvez devesse imitá-lo, tomar um banho escaldante e preparar-se para sair, mas antes de o fazer, deixou-se ficar a observar a rua mais um momento. Passou do outro lado do passeio Lady Montgomery, transportando ao colo o seu adorado Yorkshire Terrier, de nome Horace. Sorriu. Um latido de cão ecoou entre as fachadas dos condomínios.

            Holly afastou-se da janela e andou descalça, vagueando pelo apartamento, até entrar na casa de banho e fechar a porta suavemente atrás de si com um clic. Tomou banho, saiu da banheira, enrolou uma toalha em volta do corpo magro e pouco anguloso. Com as costas da mão, limpou o vapor que se acumulara no espelho e viu o seu reflexo. Como sempre, gostou da imagem que lhe era devolvida. Depois de ter aplicado o baton, o rouge e as pestanas falsas, vestiu o elegante e justo vestido negro e calçou os seus sapatos de salto agulha. Agarrou o casaco e empoleirou os óculos de sol na cana do nariz. Ao sair de casa, calçando as luvas, atravessou a rua e caminhou firmemente pelo passeio. Como habitualmente, repetiu para si mesma a frase de todos os dias: «Holiday, as memórias ficam em casa.» Rapidamente, tinha desaparecido no interior de um táxi, em direcção ao coração de Nova Iorque. Na esquina do seu condomínio, estava encostado um homem, espadaúdo e mal arranjado, que a viu afastar-se no seu descomprometido e régio modo de andar. «Malditas bonecas de luxo.» pensou. Mastigou um pedaço de tabaco, fungou e cuspiu para o chão, limpando o nariz à manga suja do casaco. Desapareceu numa ruela, com a mesma naturalidade de quem estava a entrar em casa.

(Este é um texto - fora da série - feito por mim, para a Fábrica de Histórias.)

 

***

 

E obrigada a todos aqueles que ajudaram o blog a atingir mais de 1000 (mil) comentários!

 

publicado por Katerina K. às 12:09

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