- E as regras?
A pergunta tinha sido feita num timbre feminino, repleto de harmónicos e de vida. Núria, disse para mim mesma, saboreando a cor daquela voz. E tinha razão. Ouvi imediatamente os seus passos, aproximando-se de mim. Quando parou, o macio odor que os seus longos cabelos loiros exalavam acariciou-me as narinas. Ela atirou um largo sorriso na minha direcção, mostrando-se surpreendida pela minha presença. Levou as mãos aos bolsos do seu vaporoso vestido cor de pêssego e, quando se ia preparar para falar, foi interrompida pelo Anjo.
- Não gosto de travar duelos limitado por regras. Pelo menos contra o Ricardo. – deu uma gargalhada seca.
A Núria suspirou.
- António, – foi estranho ouvi-la tratá-lo pelo primeiro nome – de quantos duelos foste desclassificado por não seguires as regras?
- Demais. – a sua face não ostentava de novo nenhuma expressão em especial.
- Bem me parecia. – replicou ela, impiedosa.
O Ricardo já tinha retirado a máscara e passava furiosamente a mão direita pelo cabelo. O Anjo atirou o sabre para o chão e caminhou de encontro à irmã. Parou muito perto dela, inclinou-se para a beijar no rosto. Vi-me transportada para uma memória recente, uma memória que só a mim dizia respeito. A recordação agitou-se no meu íntimo e floresceu, a preto e branco. O David passava-me o seu comprido indicador pela linha da mandíbula, num gesto carinhoso, e os seus lábios fecharam-se sobre a pele da minha face. Fora um beijo de ternura e gratificação, como se me estivesse a agradecer por todos os segundos. Sorri, e abracei-o, do mesmo modo que me abraçaria a mesma.
Uma voz.
- Joana?
Passei a língua pelos lábios.
- Desculpa, Anjo. Estava a pensar.
- Ainda bem. Julguei por momentos que estavas a ter um ataque de ausência.
- Agora estou bem assente na terra.
Pela primeira vez, senti o olhar pesado do Francisco pousado sobre mim. Era um olhar azul, bélico, que conseguia exercer um certo impacto à sua volta. Fitou-me de um modo que era impossível descrever. Reconheci curiosidade, confusão, timidez. Não passava de um menino, ainda. Vi que ele percebeu o que eu pensava, pois uma faísca de fúria libertou-se dos seus olhos e atravessou-me de um lado ao outro. Observei o chão, tentando redimir-me dos meus próprios pensamentos.
Senti a mão gelada do Anjo no meu braço, a sugar-me o calor corporal, sem que chegasse a aquecer. Empurrou-me devagar para que o seguisse. Quis pegar-lhe na mão, mas fechei impulsivamente os dedos, lembrando-me que era melhor não o fazer. Uma vibração estranha atrás de mim disse-me que o Francisco tinha reparado na minha hesitação, e quando os nossos olhares se cruzaram fui submersa por um poder que me soterrou. Era perturbador um rapaz tão jovem ser capaz de ter dentro de si tamanha frieza.