Era o rapaz, o rapaz que estava na sala quando escorreguei da varanda. Vi, pela primeira vez claramente, as suas feições. Os traços que lhe definiam a face eram extremamente belos, raiando o divino. Na verdade, eu nunca tinha visto nada assim. O nariz era curto, perfeitamente moldado no mármore que era a sua pele. A linha do maxilar, claramente definida, demorava-se no limite daquele rosto transcendente. Os seus olhos estavam fixos em mim, olhos cinzentos, gelados. Tal figura dificilmente podia ser considerada qualquer coisa para além de uma estátua. Mas, surpreendentemente, respirava.
O David deu um passo em frente.
- Mais uma vez, invades-me a casa e comprometes a integridade do meu piano, sem pedir a minha autorização! Vou pôr um cadeado nesta porta.
Antes de responder, o rapaz perscrutou-nos gelidamente e afastou uma mecha de cabelo negro dos olhos. Depois, falou, e a sua voz aveludada e derretida encheu-me os ouvidos harmoniosamente.
- É melhor não. Perdias a chave em três tempos.
Seguiu-se um momento de tensão e silêncio morto. Então, ele sorriu. Não pensei que tal coisa fosse possível, mas aquele sorriso, tão surpreendentemente verdadeiro, iluminou-lhe o rosto, mostrando um batalhão dentário imaculadamente branco e perfeitamente alinhado. Ele e o David abraçaram-se, envolvendo-se mutuamente com um carinho sobrenatural. Eu, completamente perdida, observava-os com um ar de absoluta perplexidade. Quanto mais tempo o observava, mais eu tinha a certeza de que nunca tinha visto aquele rapaz. Se eu já o conhecesse, certamente me lembraria de tal criatura. Subitamente, ele dirigiu o seu angustiante olhar na minha direcção e pronunciou-se, como se tivesse lido os meus pensamentos.
- Joana, certo? Não te deves lembrar, mas nós já nos conhecemos.
Franzi o cenho, intrigada.
- Impossível. – respondi – Eu lembrar-me-ia.
Ele sorriu.
- Acho que não expus bem a questão, peço desculpa. Nós já nos vimos, em Frankfurt, há um ano.
- Eu lembro-me bastante bem da ocasião. – esforcei-me por sorrir – E também me lembro que não te vi.
- Bem, eu vi-te. Joana, a flautista. Estavas com o Hélio, nesse dia.
- Ah! Vejo que conheces o Hélio!
- Sim, muito bem.
A conversa parecia ter morrido ali quando a voz do David me tiniu nos ouvidos.
- Joana, este é o António Nuno de Júlio Oliveira, mais conhecido por Anjo.