BLOG FECHADO

31
Ago 09

Acabei por me sentar, meia sem jeito, num dos cadeirões. Observei lentamente tudo à minha volta, passando o olhar pelas lombadas da imensa quantidade de livros que serenamente descansavam nas prateleiras, enfeitadas por uma finíssima camada de pó que passava por invisível ao observador menos atento. Dei pelo tempo a passar, primeiro um minuto, depois outro, e outro e outro. Passaram vários minutos. Sobre a lareira, pendurada na parede, encontrava-se uma aguarela de muitíssima qualidade, ilustrando um campo viçoso e verde. Não estava assinada, apenas se via uma data rabiscada a carvão no canto inferior direito da obra. Tive de fazer um especial esforço para conseguir lê-la: 16/07/93. Estremeci – era a minha data de nascimento. Nesse momento, a porta abriu-se e uma mulher entrou na sala. Era alta, elegante sem ser magra, com um cabelo castanho completamente liso e lustroso. O seu rosto era oval e bonito, culminando numa testa comprida e lisa que terminava nuns densos olhos verdes. Estava vestida de uma maneira muito formal, com um saia-casaco cinzento que lhe caía bastante bem. Ela fitou-me por um milésimo de segundo, agarrou um livro e voltou a sair. Pela sua atitude, percebi que não era da família. O seu olhar recatado e andar profissional haviam-na denunciado. Recostei-me no cadeirão, observei o tecto de madeira, suspirei. Tinha sido um erro vir ali sem avisar. Podia ter telefonado primeiro, seria muito mais prático. Praguejei mentalmente, fechando os olhos por um minuto apenas. Todos os meus outros sentidos se apuraram imediatamente. O veludo do cadeirão na ponta dos dedos, o sabor da minha boca seca, o cheiro dos livros, o som de um carro. Abri imediatamente os olhos, continuando consciente do ronronar do motor do lado de fora da casa. Levantei-me para me debruçar na janela. No exterior, um Porsche Panamera negro estacionava agilmente junto ao passeio. Aquele era um carro elegante, escultural e absurdamente caro, tal como todo o recheio do edifício em que me encontrava. A porta do condutor do Porsche abriu-se num movimento lento, e um pé calçado numa sapatilha branca Converse All Star encontrou a pedra do chão. O resto do corpo seguiu-se, num misto de graciosidade e calma, e a figura delgada de um rapaz pálido como um cadáver ergueu-se na rua. Tirou os óculos Ray Ban num só gesto, expondo o seu olhar leonino à ofuscante luz do sol. A mão esguia empurrou a porta do carro e fechou-o, acabando por se introduzir no bolso das calças de ganga esbatida. O rapaz caminhou a passos largos e atléticos pelo passeio até à entrada da casa, saindo do meu campo de visão.

publicado por Katerina K. às 18:18

28
Ago 09

            A mulher que abriu a porta parecia ter sido tirada de um filme de Hitchcock – uma empregada de aspecto imensamente vitoriano, envergando uma sóbria farda negra e com os cabelos envoltos numa touca tão branca quanto o seu avental.

            - Posso ajudar? – a sua voz soou mecânica, mas não totalmente desagradável.

            - Sim, sim, acho que sim. – balbuciei – Estou à procura do António Nuno de Júlio Oliveira.

            Ela respondeu automaticamente, sem hesitar sequer um segundo.

            - O menino António não está em casa. Saiu.

            - Ah, que pena, precisava de falar com ele.

            - Quer esperar ou prefere deixar recado?

            Considerei as opções por um breve instante.

            - Vou esperar.

            - Muito bem, menina.

            Ela afastou-se para me deixar passar e entrei na casa. O interior ainda conseguia ser mais estonteante que o exterior. O vestíbulo, ampla divisão de chão de mármore escuro, era revestido por painéis de madeira polida. Viam-se estátuas, pesadas tapeçarias, vasos de porcelana chinesa aureolados por arranjos florais onde se destacavam as orquídeas brancas e, pendurado no tecto ornamentado, existia um vasto candeeiro de cristal. Deixei-me ficar inerte, observando aquele cenário de rara beleza, rodeado por portas tão discretas que pareciam camufladas. Uma delas abriu-se e a empregada desapareceu no compartimento. Esperei que o vestíbulo ficasse em silêncio, mas não foi isso que aconteceu. Pairava no ar uma música leve, não mais que uma névoa, que reconheci imediatamente: a abertura de «A Flauta Mágica» de Mozart. Passado uns instantes, uma outra porta abriu-se e ouvi uma voz, encarquilhada mas firme, a encher o ar.

            - Menina?

            Levantei o olhar e vi um mordomo, magro e de cabelo branco, a dirigir-se na minha direcção. Também este estava fardado de preto, com as mãos enluvadas pendentes ao longo das pernas curtas. Os sapatos magnificamente engraxados embatiam no mármore com um clac clac característico.

            - Pode fazer o favor de me seguir?

            Assenti, caminhando no seu encalço. Ele conduziu-me àquilo que parecia ser um escritório. As paredes, forradas até ao topo por estantes, estavam repletas de livros do mais diverso tipo. O chão era coberto por um tapete de Arraiolos com um desenho complexo, sobre o qual se encontravam dispostos três cadeirões em frente à lareira. No outro extremo do compartimento, existia uma secretária monumental, revestida por papéis e documentos meticulosamente organizados. O mordomo, com uma vénia, deixou-me sozinha na sala, entregue ao silêncio e ao cheiro ténue do papel e da madeira.

publicado por Katerina K. às 11:57

26
Ago 09


 

Estou de volta, queridos leitores. A Polónia encheu-me de ideias, estou a rebentar pelas costuras de imaginação. No entanto, não foi o suficiente para escrever uma série sobre a viagem, mas não há problema, pois uma série nova - esta - estava já prometida. Então, para os recém-chegados, esta é a continuação da série «O Rapaz Cor de Luz». Aconselho a lê-la primeiro. A série pode ser lida como uma história independente, mas algumas coisas vão escapar ao leitor. Espero que gostem!

Joana F.

 

 

 

 

Brisa, substantivo feminino – vento fresco e brando que, de dia, sopra do mar para a terra ou do vale para a montanha e, de noite, em sentido contrário; aragem; viração.

 

            O Honda Hybrid do Hélio parou silenciosamente junto ao passeio, as rodas arranhando suavemente a calçada.

            - É aqui.

            Olhei a casa que ele me indicou, com um certo medo. Era um edifício magnífico, alto e majestoso, erguendo-se em paredes imensas de granito, janelas e vitrais.

            - O castelo do Drácula. – murmurou o Hélio, quase inaudivelmente.

            Não me consegui rir, pois no meu íntimo eu sabia que era uma boa metáfora, talvez boa demais. Recostei-me no banco confortável, com as mãos unidas em concha no regaço, entre as quais repousava uma folha de papel branco dobrada em quatro. O bilhete. «Visita-me, por favor.» Aquelas palavras estavam tão vívidas na minha mente como se tivesse sido eu a escrevê-las. Durante as passadas duas semanas, eu havia reflectido sobre aquele pedido, tão elegantemente desesperado, que jazia naquele pedaço níveo de celulose, decalcado a tinta preta proveniente do que, pelo risco específico e inconfundível, me parecia ser uma caneta Parker – a caneta que o Anjo tinha desde os seus doze anos. Aprendi muito sobre ele nas minhas conversas com o Hélio, mas não o suficiente para conseguir extinguir a minha crescente curiosidade. Aprendi, por exemplo, que ele tinha dezoito anos e não os iniciais dezasseis que eu lhe havia atribuído. Deixara-me enganar pelo rosto macio e desprovido de qualquer tipo de barba, o que era especialmente estranho para um rapaz da idade dele. Aprendi também que nascera a 25 de Dezembro, no dia de Natal, e que era o terceiro de sete irmãos.

            - O Anjo – dissera-me o Hélio – é boa pessoa, mesmo que não seja essa a impressão que deixe habitualmente. No entanto, não se pode dizer que seja alguém simples. Ele tem as suas…bem, particularidades. Algumas certamente já tiveste ocasião de ver, outras ainda não. Mas verás o que quero dizer.

            Abri os olhos, fitei o rosto vermelhusco e redondo do Hélio.

            - Obrigada pela boleia. Não queria vir sozinha de comboio.

            - Oh, Joaninha, não agradeças. Admito que a viagem é extenuante, mas Sintra é uma cidade insolitamente bela. Vale a pena cá vir.

            Sorri, não antes de o beijar no rosto. Agradeci mais uma vez, e obtive como resposta um amigável aceno. Enquanto via o Honda a descer velozmente a rua, comecei a reconsiderar a minha decisão. Virei-me e observei a porta de entrada da casa. Era um colosso de mogno escuro, sério e solene, embutido na pedra malhada. Só aquilo já impunha um respeito fora do comum. Engoli em seco e toquei à campainha.

 

publicado por Katerina K. às 18:05

17
Ago 09

 

Como prometido, eu queria postar uma pequena parte do primeiro capítulo do meu policial antes de partir para a Polónia, coisa que acontece quarta-feira. Portanto, deixo-vos com uma espreitadela daquilo que um dia espero publicar. Espero pelas vossas opiniões!

Joana F.

 

 

 

O Comissário Elias Pimenta era um homem de princípios, um homem de hábitos firmes e convictos que odiava qualquer actividade que adulterasse o seu arrumado e ocioso dia-a-dia. Todas as manhãs, acordava às seis e meia da madrugada, levantava-se vigorosamente e vestia a farda, que envergava com um raro orgulho patriótico. Fazia a barba e penteava o farto bigode grisalho, no qual depositava um especial carinho, e, depois de se despedir da mulher e das duas filhas, saía de casa para ir trabalhar, na esquadra do Comando Metropolitano do Porto da Polícia de Segurança Pública. Todos os dias, sem excepção, tomava um café forte e mordiscava um pastel de nata no Café da Gracinha, junto à esquadra. Depois, mesmo antes de entrar ao serviço, fumava um dos seus dois cigarros diários.

No entanto, aquele dia começara particularmente mal para o Comissário Pimenta. Acordara um quarto de hora mais tarde, cortara-se a fazer a barba, os pastéis de nata da Gracinha estavam queimados demais e o seu isqueiro pura e simplesmente não acendia. Deste modo, quando Elias Pimenta entrou na esquadra e bateu com a porta do seu gabinete atrás de si, Íris Marinho, a sua fiel e devota secretária, soube que o dia não ia ser fácil. Íris ergueu-se sobre os seus elegantes e conservadores sapatos de salto alto e caminhou calmamente até à porta do gabinete. Bateu levemente com os nós dos dedos, abriu-a e entrou, sem um ruído. Elias Pimenta estava sentado na sua confortável poltrona giratória, com os cotovelos apoiados na mesa e o rosto entre as mãos. A mulher, ignorando o triste cenário como boa subordinada que era, falou clara e pausadamente, escolhendo as suas palavras com máxima eficácia.

- Bom dia, senhor Comissário. Deseja que lhe traga alguma coisa?

Sem tirar a cabeça de entre as mãos, o homem respondeu.

- Não, obrigado.

- Que tal uma chávena de chá quente?

- A Íris sabe que odeio chá.

Sim, a secretária sabia-o. No entanto, na pilha de nervos que o Comissário se encontrava, um chá de camomila não lhe faria mal nenhum.

- Como queira, senhor Comissário.

- Traga-me o correio, apenas.

Ela girou nos calcanhares e flutuou rapidamente sobre o linóleo, até à sua mesa, onde mantinha o correio. Voltou ao gabinete e estendeu-o na direcção do Comissário. Este agarrou-o avidamente, como que num acto de desespero, os seus olhinhos negros cintilando em ansiedade. A ordem e concentração que aquela actividade exigia certamente trariam alguma serenidade ao seu mundo. Íris retirou-se solenemente, voltando ao seu posto. À sua volta, ouvia barulhinhos, telefones, vozes abafadas, tosses roucas. Tirando a cólera pouco característica do Comissário Pimenta, aquela era uma manhã como todas as outras. Levando as mãos à nuca, a secretária arranjou o cabelo acobreado eficientemente apanhado e certificou-se que a blusa verde estava bem segura pela saia negra que lhe beijava os joelhos. Depois, deu continuidade ao seu trabalho: dactilografar um longo relatório. Já ia a mais de meio, os seus dedos afunilados voando sobre as teclas, quando a dupla porta envidraçada da entrada se abriu de par em par e um indivíduo fardado se introduziu na esquadra.

 

publicado por Katerina K. às 19:53

14
Ago 09

Para a Ametista.

 

Uma semana depois, eu estava em casa da Ariel. Tínhamos almoçado bem e o processo da lavagem da louça revelara-se muito pouco complicado. Acomodámo-nos na sala de estar, com a televisão ligada, a comer morangos com chantilly e línguas de gato.

            - Diz-me, - proferiu a Ariel, com a boca cheia e a sacudir os dedos – como foi a tua estadia em casa do David?

            - Boa. – respondi – Tu sabes, o costume.

            - Estou a ver.

Ela arrumou o assunto, e eu agarrei os joelhos, encostando-os ao queixo. Tínhamos começado uma nova conversação sobre os nossos programas para aquele fim-de-semana quando a Dona Marta, a mãe da Ariel, abriu a porta de mansinho e enfiou a cabeça na fresta.

            - Joaninha, querida, queres que lave as tuas calças de ganga?

            - Se não se importar. – respondi, grata – Quanto fomos lá fora, a Rubi sujou-me toda.

            - Essa cadela cansa-me a alma! – disse a Dona Marta, suspirando – Não te importas que verifique se deixaste alguma coisa nos bolsos?

            - Não me importo, - disse eu, encolhendo os ombros – mas tenho quase a certeza de que estão vazios.

A mãe da Ariel deixou-nos de novo sozinhas, dando-nos liberdade para retomarmos a nossa conversa. No entanto, uns minutos depois, regressou, e entre o polegar e o indicador da mão esquerda trazia um papel branco dobrado em quatro.

            - Isto estava num dos bolsos da frente.

Apontou na minha direcção com o papel. De sobrolho franzido, peguei nele e voltei a sentar-me. Depois de ela ter ido embora, abri-o com extremo cuidado. Li-o, e na minha face deve ter ficado impressa uma expressão de choque total, pois os olhos verdes da Ariel brilhavam perversamente de curiosidade.

            - O que é, o que é?

            - É um…bilhete. – demorei uns segundos a soltar aquela última palavra.

            - O que diz? – perguntou ela, ávida.

            - «Sou demasiado teatral e arrepiante. Mesmo assim, visita-me, por favor.»

Pousei o papel e fitei-a. Estava visivelmente confusa, mas ainda assim ansiosa.

            - Quem escreveu isso?

Ri-me, observando aquela caligrafia inclinada e perfeita, como se tivesse sido medida com uma régua. Voltei a erguer os olhos para o rosto corado da Ariel.

            - É uma história comprida. Muito comprida.

 

 

 

                                                           FIM

(?)

 

 

Acaba aqui esta série. Espero que tenham gostado.

Mas um fim é sempre o início de algo novo.

 

publicado por Katerina K. às 14:11

12
Ago 09

Para o Caravagio, com a minha admiração.

 

            - Que madrugadores! – disse o David, quase gritando.

O Anjo riu-se, deixando a sua gargalhada profunda e galante dispersar-se pelo ar saturado e quente.

            - Acordar antes das onze da manhã não faz com que uma pessoa seja madrugadora.

            - Não?

            - Não me parece.

Sorri interiormente, com a leve sensação de que o David ficara envergonhado com aquela troca de palavras.

            - Está bem, está bem. – disse, carrancudo – Quando voltas para Sintra?

            - Agora.

Levantei o olhar para o rosto do Anjo.

            - Tão cedo? – perguntou o David.

            - Só vim cá dizer-te olá e trazer a minha irmã, não queria que ela viesse sozinha. Agora, está na hora de voltar para casa. Tenho outros quatro irmãos para tomar conta.

            - A Núria já é crescidinha.

            - Bem sei, mas mesmo assim gosto de tomar conta dela. A Núria é a mais velha, e eu o mais responsável.

A conversa não durou muito mais tempo. Uns minutos depois, já estávamos no portão, a despedirmo-nos dele.

O Anjo abraçou o David, dizendo-lhe qualquer coisa imperceptível ao ouvido. Acabando de se despedir do David, o Anjo pegou na minha mão e levou-a aos lábios, tal como na noite anterior. Mas desta vez, para além de ter sido um beijo frio, fora um beijo com uma intensidade completamente diferente. Beijou-me a mão com o mesmo fogo de como se me estivesse a beijar na boca. Fiquei surpresa, surpresa o suficiente para só reagir quando o Mercedes prateado desaparecia no horizonte da rua estreita e o som do motor se desvanecia com a distância, cada vez maior.

 

publicado por Katerina K. às 19:17

11
Ago 09

Para o Eduardo.

 

Eram onze horas, um calor morno debruçava-se sobre o pátio onde eu estava sentada a ler. Os raios de luz esgueiravam-se pela ramada que me cobria a cabeça, derramando uma claridade esverdeada sobre o local. Absorta na minha leitura, nada mais ouvia do que o gentil restolhar das páginas e o canto brilhante dos pássaros. Parecia finalmente ter encontrado um momento de serenidade e paz naquele sítio. A casa do David era um edifício antigo, semelhante a um palacete, que se estendia por uma ampla propriedade espraiada no gigantesco jardim de um eterno verde. O imenso portão de ferro marcava o final do caminho de terra batida, revestido de um lado por uma ramada de kiwis, que desembocava na rua estreita e ladeada por pequenas casas de todas as cores. Mas, de todo aquele lugar rústico, quase histórico, o meu sítio favorito era o pátio onde estava naquele momento. Como se encontrava virado para oeste, era a parte mais fresca da propriedade, de manhã. Por essa razão, eu ali me instalara.

            - Está um dia quente, não está?

Assustei-me, soltando um involuntário e surpreso «oh!». O Anjo materializara-se junto a mim, com as mãos unidas atrás das costas e uma expressão sem revelar o que quer que fosse. Pousei o livro no regaço e levei a mão ao peito, soltando um suspiro de alívio.

            - Desculpa. – disse ele – Costumo ter este efeito nas pessoas.

            - Ah, sim? – proferi, sem conseguir esconder a ironia pendente na minha voz.

            - Sim, como podes ver. Sou uma pessoa bastante dramática, é um defeito horrível.

            - Não, se for doseado.

O Anjo assentiu, tomando graciosamente o banco de pedra à minha frente. Cruzou as pernas compridas, recostou-se no granito.

            - Dosear não é bem o meu forte.

Sorriu, de uma maneira que localizei entre o sarcasmo e o escárnio. No entanto, eu provavelmente estaria enganada, já que só se conseguia ler no Anjo o que ele queria que se lesse.

            - Nem o meu. – admiti, sem deixar de corar ligeiramente.

            - Pois, eu calculei que não fosse.

Fechei o livro.

            - Joana?

            - Sou eu.

            - Eu assusto-te?

            - Sinceramente?

            - Convinha.

            - Assustas.

            - Bem, lamento.

            - Eu não. – disse, encolhendo os ombros.

Ele olhou-me de uma forma suavemente interrogativa.

            - Arrepias-me, mas não te odeio. Nem te conheço. É razoavelmente imprudente fazer juízos sobre as pessoas sem saber nada delas, não achas?

Não houve tempo para uma resposta, nem sequer para uma reacção. As majestosas portas envidraçadas da sala do piano abriram-se ruidosamente, e um David de tez saudável e porte jovial saiu para o pátio.

 

publicado por Katerina K. às 11:24

08
Ago 09

Para o J.

Para a InêsM.

 

Acordei. Esfreguei os olhos bruscamente e mexi-me na cama. O David ainda não acordara, continuava de pálpebras cerradas e lábios entreabertos, respirando profundamente. Conhecendo o David como conhecia, eu sabia bem que ele dificilmente se levantaria antes das onze e meia. Como ainda era relativamente cedo, perto das oito horas, decidi levantar-me cautelosamente para não o acordar, se bem que ele tinha um sono de pedra. Aconcheguei os pés descalços nas sapatilhas e caminhei até ao canto do quarto. Aí, numa cadeira, eu conseguia ver que as minhas roupas do dia anterior espreitavam por baixo das calças e t-shirt do David. Resolvi, então, tomar um banho e vestir umas roupas lavadas. Dirigi-me ao guarda-fatos e abri-o. Como eu passava imenso tempo em casa do David, algumas das minhas roupas, incluindo um pijama, haviam-se tornado residentes. Assim, ao fundo, eu conseguia ver uma pilha de t-shirts minhas, um casaco de malha e uma camisola azul. Ainda, entre um casaco do David e uma camisa, estavam pendurados dois pares de calças que eu reconhecia como sendo meus. Escolhi algo casual e leve e fui tomar banho.

Não demorei muito a ficar pronta, e dei por mim a descer as escadas em caracol. Aquelas escadas sempre me causaram um certo receio, principalmente quando eu as tinha de descer, à noite, descalça e com os olhos remelosos, só porque o David ou o Afonso queriam um copo de leite quente.

Atravessei o corredor da noite anterior. À luz da manhã, era um local muito menos assustador. Abri a porta da cozinha, entrei. Para meu espanto e quase terror, ali estava ele, o Anjo, sentado elegantemente numa cadeira, com as pernas cruzadas de um modo gracioso, a ler o jornal. Não o tirou da frente do rosto, mas notou que eu ali estava e saudou-me de uma forma totalmente neutra.

            - Bom dia.

Soltei um som que se assemelhou a um ronco qualquer misturado com uma fungadela. Avancei para o frigorífico, abri-o, e verti uma quantidade considerável de sumo de laranja para dentro de uma caneca. Encostei-me à bancada, beberricando o líquido fresco, sem conseguir evitar de observar o Anjo. Vestia umas calças pretas impecavelmente vincadas e uma camisa branca, as mangas da qual se encontravam arregaçadas até aos cotovelos, mostrando a sua pele lisa e nívea. Baixou o jornal e fitou-me nos olhos, tal como se me fosse hipnotizar. Percebi que ia dizer alguma coisa, mas nesse instante, a Mãe do David irrompeu na cozinha, dando os bons dias. Deste modo, o Anjo voltou a erguer o jornal e ficou em silêncio.

publicado por Katerina K. às 17:20

07
Ago 09

Olhei-o, perplexa.

            - Irmãos? Como é que isso é possível?

O David fitou-me, como se já esperasse aquela reacção da minha parte.

            - Genética não é, definitivamente, o meu forte. – respondeu – Ele é o único na família assim. Deve ter ido buscar os genes a uma avó ancestral qualquer. – Encolheu os ombros.

            - Mas ele é tão…tão pálido.

O David observou-me de lado, de uma maneira especialmente astuta.

            - Tem um certo charme, não tem? A forma como ele sorri, como ele olha para as pessoas…e, principalmente, como fala.

Lembrei-me da sua voz adocicada, elegante, das palavras formais que se desenrolavam através daqueles lábios sem cor.

            - Isso é o que mais me arrepia. Não é aquela voz de cobra, é antes como passar a mão por penas.

            - Bela comparação. – mordeu o David, baixando os olhos.

            - Não gozes. – belisquei-o perto do pulso.

            - Au! Não estou a gozar!

            - Sim, pois! Seja como for, estou cheia de sono. Já me basta de sustos por hoje. Bonne nuit.

Apaguei a televisão e virei-me para o outro lado, de costas viradas para ele, cobrindo-me com o lençol. Pouco depois, ele deitou-se ao meu lado e o silêncio abateu-se sobre o quarto.

Nem tinham passado dez minutos quando falei.

            - David?

            - Sim?

            - Não estás a dormir, pois não?

            - Pergunta escusada.

Senti-o a estender o braço na minha direcção. Ele havia percebido o que eu queria. Mexi-me, de modo a ficar deitada no ombro dele, com o seu braço a envolver-me as costas. Instalei-me confortavelmente nele, vendo que estava quente como um pedaço de carvão na fornalha.

            - Agora, sim. Boa noite.

            - Boa noite. – respondi.

Nesse momento, eu quase que podia jurar que tinha ouvido uma outra voz, murmurante e hipnótica, a desejar boa noite. Mas, provavelmente, fora só impressão minha.

publicado por Katerina K. às 18:51

06
Ago 09

A pedido da minha cara Isabel, postei a sexta parte d'O Rapaz Cor de Luz mais cedo. Espero que gostem.                 Joana F.

 

Eu estava deitada na cama do David, com o pijama vestido. A única coisa que iluminava o quarto era o brilho fosco da televisão. Na minha mão, pendia o comando, bamboleante como um ramo à brisa da tarde.

Na casa de banho adjacente, conseguia ouvir a água a correr e o David a escovar os dentes. Pisquei os olhos umas quantas vezes antes de inspirar fundo e formular a pergunta que me bailava nos lábios.

            - Quem é ele?

O David assomou à porta, a toalha à volta da cintura e a boca envolta em espuma com cheiro a mentol.

            - Hã?

            - O Anjo.

Ele riu-se.

            - Vais insistir nesse assunto?

            - Sim, até me dares uma resposta concreta.

Olhei-o, apática, e ele sentou-se a um centímetro de mim, na borda da cama.

            - O que tens contra ele?

            - Nada, absolutamente nada. Mas ele assusta-me.

O David suspirou, limpando a boca à toalha. Levantou-se e agarrou nas calças do pijama. Dirigiu-se à casa de banho, voltando em menos de vinte segundos. Sentou-se, as costas nuas encostadas à cabeceira da cama.

            - Se queres que te diga, não sei muito sobre a vida do Anjo. – proferiu, num tom frágil que imediatamente estranhei – Quer dizer, conheço-o bem, mas sei o suficiente para não querer saber mais.

Calou-se. Mantive-me em silêncio, à espera. A luz morta da televisão alternava entre o azul e o verde, tingindo o quarto. Por fim, virou-se para mim e cruzou as pernas. Falou num tom ponderado, no limiar do grave, como se me estivesse a contar uma história para adormecer.

            - Conheci o Anjo há dois anos. Na altura, ele já era uma personagem um bocado insólita. Nem fui eu que me dei a conhecer, o Hélio tratou de nos apresentar. Eu já tinha ouvido falar dele, comentários vagos aqui e ali. Quando o vi a tocar, achei grotesco, para ser o mais sincero possível. Não por ele tocar mal, mas por as suas interpretações serem terrivelmente densas. Com o tempo, melhorou ligeiramente, mas não por vontade própria. A sua paixão é Rachmaninov. Foi assim que percebi que era ele quem estava na sala do piano. Mais ninguém toca Rachmaninov daquela maneira, ninguém. Fiquei surpreendido, pensei que ele estivesse em Sintra.

            - Não sabias que ele cá estava? Eu já o tinha visto, na sala de jantar, com aquela rapariga bonita.

            - A Núria. – sorriu.

            - São amigos?

            - São irmãos.

publicado por Katerina K. às 11:37

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