BLOG FECHADO

05
Jun 09

 

Foi ontem à tarde, depois de estudar, que subi as escadas e encontrei o David, vestido de branco, sentado nas escadas. Não me viu, esfregava as mãos uma na outra. Estava à espera de alguma coisa, notava-se. Depreendi que fosse do professor de piano. Passei por ele sem lhe dirigir palavra, não lhe queria arruinar a meditação.

«Joana.»

«Ah, viste-me. Não te queria chatear.»

Ele sorriu.

«Como estás?»

«Bem, cansada. E tu?»

«Roto, mesmo roto. Preciso de uma noite de sono completa.»

Sim, era verdade. As olheiras desenhavam-se à volta dos seus grandes olhos, por detrás dos óculos. Eu sabia bem que ele não dormia, muitas vezes acordei do meu quinto sono com uma mensagem ou chamada dele. Mas atendo sempre, porque gosto de ouvir a sua voz.

Pedi-lhe que tocasse para mim. E assim ele fez. Já há muito tempo que não o fazia, talvez porque durante o ano não passámos tanto tempo juntos como era costume. Ele sentou-se ao piano do salão nobre, limpou as mãos às calças.

«Toca aquilo que eu gosto.»

O David riu-se, e a sua gargalhada ecoou entre as paredes do compartimento e perdeu-se nos candeeiros apagados. As sombras começavam a abater-se.

«Outra vez? Não te cansas?»

Não, pensei, esboçando um sorriso sincero.

As duas primeiras notas encheram-me por completo. Si , dó - fez o piano, levantando-se em glória e sentimento. Senti os olhos a serem assolados por lágrimas. Levantei-me, caminhei lentamente até às janelas e virei-me de costas, para que ele não me visse chorar. Eram lágrimas quentes, lágrimas de alegria. Tantas vezes ouvi o Hélio a tocar aquela peça, sem que ela me fizesse chorar. Mas com o David era diferente, era sempre. O David colhe a música em mãos nuas e deixa-a amadurecer. Acaricia-a, beija-a, educa-a e disciplina-a. E ela obedece-lhe cegamente, como serva submissa e amada. Eu choro e limito-me a ouvir o que ele faz com as mãos.

Fui-me aproximando, e quando o David parou, já eu estava debruçada sobre as cordas do piano a senti-las, revibrando, sob os meus dedos.

«Obrigada.»

«Ora essa, é sempre um prazer. Eu sei que gostas da peça, e eu gosto que estejas feliz.»

Limitei-me a sorrir.

Pouco depois, Prokofiev, Liszt e Bach ganhavam vida nos seus dedos. Dessas vezes, não chorei. Observei-o atentamente, as mãos a mexerem-se rápida e elegantemente, animadas de uma energia quase irreal.

Chegou o Cláudio. O David pousou as mãos no colo, sorriu e levantou-se. Inclinou-se sobre mim e beijou-me os cabelos. Passei-lhe os dedos no braço descoberto da t-shirt. Saí, deixei-o com as sombras e as vibrações das cordas do piano.

 

 

 

Até um próximo post,

J.F.

publicado por Katerina K. às 17:02

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