Era ele. Era mesmo ele. Violet sentiu-se soterrada, confusa, maravilhada. O pequeno adolescente de cabelo cor de chocolate amargo e olhos leitosos transformara-se num homem completamente diferente. Ela nunca pensara que ele se tivesse tornado num músico rock, que tivesse trocado o violino pela guitarra eléctrica. Por alguns momentos, que lhe pareceram longos demais, Violet permaneceu calada, a fixar os olhos maduros e a ver neles o passar dos anos. Nos lábios dele, esculpidos de carne e pele, surgiu um sorriso, escuro mas verdadeiro.
- Violet, há quanto tempo.
Ela abriu a boca para falar, mas desta não saiu qualquer som. Manteve-se pregada ao chão, a agitar suavemente os braços na frente do rosto, como a certificar-se que aquilo estava, de facto, a acontecer.
- Desculpa se te surpreendi. A verdade é que, bem, mudei um bom pedaço.
O baterista riu-se, pousando as baquetas no colo e recostando-se na cadeira.
- Lance. Lance. Meu Deus, nem consigo acreditar. – disse ela, tapando a boca com ambas as mãos.
- Sim, estou diferente. Mas podes acreditar, sou mesmo eu. – respondeu ele, numa estranha tirada, a qual, aparentemente, soou divertida.
A rapariga não soube o que replicar. Estava fascinada, num sentido bom e mau simultaneamente, se é que isso era possível. Ele passou a fita da guitarra por cima da cabeça, pousando o instrumento sobre a coluna que servia de monitor. Desligou o quadro eléctrico, e as luzes dos amplificadores apagaram-se de imediato. Depois de se ter certificado que tinha deixado tudo devidamente desligado, fechou a frágil porta com um safanão e conduziu a rapariga até ao interior da casa.
Como ela suspeitava, dentro do edifício tudo se encontrava perfeitamente organizado, não se parecendo nada com a moradia de um músico rock. Violet sentou-se num sofá corrido, encostado à parede da sala de estar, e viu Lancelot desaparecer na cozinha. Pouco depois, ouviu a sua voz.
- Queres alguma coisa para beber? Tenho cerveja.
- Não sabia que agora bebias álcool.
O rosto dele apareceu no corredor, meio inclinado.
- Desde que fiz dezoito anos. – e sorriu.
Após sentar-se num banco em frente à rapariga e abrir com um estalido a lata de cerveja fresca que pingava gotas de condensação para o chão, cruzou as pernas e esperou que ela falasse. Como ela não o fez, cingindo-se a observá-lo atentamente, ele tomou a iniciativa.
- Bem, conta lá porque aqui estás.
- Também recebeste a carta do Raoul?
Lancelot tirou do bolso das calças um papel amarrotado e arremessou-o para cima da mesinha de pinho que se erguia entre eles.
- Recebi, há dois dias. – o seu rosto escurecia à medida que a conversa ia avançando.
- Leste?
- Li.
Violet estava à espera daquela reacção, da indiferença quanto àquele assunto, tendo em conta tudo o que havia acontecido.
- Ouve, Lance, eu sei que para ti é complicado falar disto, ainda por cima quando, obviamente, tentaste esquecer tudo o que se passou. Mudaste de vida, eu compreendo. Mas isto ultrapassa-nos a todos, é algo maior que nós. Quero a tua ajuda, preciso dela. Por favor.
Lancelot manteve-se mudo algum tempo, sendo impossível medir os minutos que foram passando. Esfregou as mãos uma na outra, demoradamente, observando-as. Estava sério e pálido, como se a vida o abandonasse gradual e sucessivamente. Os seus olhos estavam tristes, rasgados na pele clara como pó de arroz. Entreabriu os lábios, passou a língua por eles. Depois de um largo suspiro, carregado de um sentimento parecido com arrependimento, fitou Violet.
- Vou ajudar-te. Mas não o faço por nenhum de nós. Faço-o por ela.