Para o Eduardo.
Eram onze horas, um calor morno debruçava-se sobre o pátio onde eu estava sentada a ler. Os raios de luz esgueiravam-se pela ramada que me cobria a cabeça, derramando uma claridade esverdeada sobre o local. Absorta na minha leitura, nada mais ouvia do que o gentil restolhar das páginas e o canto brilhante dos pássaros. Parecia finalmente ter encontrado um momento de serenidade e paz naquele sítio. A casa do David era um edifício antigo, semelhante a um palacete, que se estendia por uma ampla propriedade espraiada no gigantesco jardim de um eterno verde. O imenso portão de ferro marcava o final do caminho de terra batida, revestido de um lado por uma ramada de kiwis, que desembocava na rua estreita e ladeada por pequenas casas de todas as cores. Mas, de todo aquele lugar rústico, quase histórico, o meu sítio favorito era o pátio onde estava naquele momento. Como se encontrava virado para oeste, era a parte mais fresca da propriedade, de manhã. Por essa razão, eu ali me instalara.
- Está um dia quente, não está?
Assustei-me, soltando um involuntário e surpreso «oh!». O Anjo materializara-se junto a mim, com as mãos unidas atrás das costas e uma expressão sem revelar o que quer que fosse. Pousei o livro no regaço e levei a mão ao peito, soltando um suspiro de alívio.
- Desculpa. – disse ele – Costumo ter este efeito nas pessoas.
- Ah, sim? – proferi, sem conseguir esconder a ironia pendente na minha voz.
- Sim, como podes ver. Sou uma pessoa bastante dramática, é um defeito horrível.
- Não, se for doseado.
O Anjo assentiu, tomando graciosamente o banco de pedra à minha frente. Cruzou as pernas compridas, recostou-se no granito.
- Dosear não é bem o meu forte.
Sorriu, de uma maneira que localizei entre o sarcasmo e o escárnio. No entanto, eu provavelmente estaria enganada, já que só se conseguia ler no Anjo o que ele queria que se lesse.
- Nem o meu. – admiti, sem deixar de corar ligeiramente.
- Pois, eu calculei que não fosse.
Fechei o livro.
- Joana?
- Sou eu.
- Eu assusto-te?
- Sinceramente?
- Convinha.
- Assustas.
- Bem, lamento.
- Eu não. – disse, encolhendo os ombros.
Ele olhou-me de uma forma suavemente interrogativa.
- Arrepias-me, mas não te odeio. Nem te conheço. É razoavelmente imprudente fazer juízos sobre as pessoas sem saber nada delas, não achas?
Não houve tempo para uma resposta, nem sequer para uma reacção. As majestosas portas envidraçadas da sala do piano abriram-se ruidosamente, e um David de tez saudável e porte jovial saiu para o pátio.