O que ouvimos não fora propriamente um barulho. De qualquer modo, fora o suficiente para todos os pêlos da parte de trás do meu pescoço se eriçarem. Agarrei o David com mais força, praticamente enterrando o seu braço no meu flanco, entre o escuro do cabedal do meu casaco. Sustive a respiração por um momento, quedando-me imóvel na escuridão da casa.
- O que foi aquilo? – sussurrei.
- Pode ter sido muita coisa. – respondeu ele, placidamente.
Outro barulhinho crepitou na escuridão. Senti o David a puxar por mim. Procurei a mão dele com o braço que tinha livre, pegando nela languidamente, os meus dedos indo ao encontro dos dele.
Ouvi a sua voz soar calma, quase doce.
- Tranquila.
- Estou tranquila.
Avançámos cegamente, sem saber exactamente para onde estávamos a ir. De repente, vimos que um laivo de luz cortava a gélida escuridão. Provinha de uma sala com a porta entreaberta, deixando a luz sair suavemente pela fresta. Outro barulho.
- Vem dali.
Percebi que ele assentiu lentamente. Depois de termos dado uns passos em frente, o David parou. Não percebi imediatamente o porquê daquela hesitação. No entanto, uns segundos depois, ouvi alguma coisa que se sobrepunha ao silêncio. Era música, uma música tão baixa que se podia quase considerar um murmúrio.
O raio de luz iluminava vagamente o rosto do David. Estava totalmente relaxado.
- Isto é…
- Rachmaninov. – completou ele.
Subitamente, um sorriso rasgou-se-lhe no rosto. Soltou uma risada curtíssima e quase imperceptível. Fez-se silêncio uma vez mais, e de novo se ouviu a música.
O David esticou o braço e, apoiando a palma da mão na madeira morena da porta, abriu-a. Ela deslizou para trás demoradamente, sem um ruído, mostrando uma sala que eu bem conhecia: a sala do piano. Era ali que tudo acontecia, por assim dizer; o sítio onde o David passava a maior parte do seu tempo. Um belíssimo Steinway & Sons de cauda completa erguia-se no meio do tapete que cobria o soalho de todo o compartimento. De repente, vi a figura. Ao princípio, tomei-o por um fantasma. Depois, percebi que era um homem. Encontrava-se de costas, sentado ao piano, as suas mãos espectrais deslizando pelas teclas tão brancas quanto a sua pele. Nesse momento, uma certa frieza cresceu dentro de mim. Ouvi-o a expirar pela boca, lentamente. Um formigueiro subiu-me pela espinha, obrigando-me a estremecer. Aí, soube que ele tinha notado a nossa presença. Baixou os braços, levou as mãos ao banco forrado a veludo. O David, ao meu lado, sorria. Então, o homem virou-se e pude ver o seu rosto cor de luz.