Eu sabia que o David voltava hoje. Acordei às quatro da manhã, o Afonso a tocar-me freneticamente à campainha. Levantei-me, preguiçosa. Quando vi as horas que eram, praguejei alto e amaldiçoei a mãe do Afonso por o ter posto neste mundo. Abri a janela, gritei para fora para ele esperar por mim, que eu já descia.
- Que belo pijama.
- Cala-te, estúpido! Já viste que horas são?!
- VAI-TE VESTIR!
Aquilo fora claramente dito em maiúsculas, portanto não questionei a atitude estranhamente autoritária que o Afonso tinha adoptado aquela manhã. Fechei a janela, agarrei no que me pareceu ser umas calças de ganga e uma t-shirt. Vesti-me atabalhoadamente, fui à casa de banho pentear-me. A luz do candeeiro ofuscou-me os olhos. Nesse momento, ouvi a Lília.
- Joana, já estás de pé?
- Já.
- Cruzes, a estas horas?! Vai masé dormir, rapariga!
- Não posso, está aí o Afonso. Eu disse-te que íamos buscar o David ao aeroporto, lembras-te?
- Ah, isso… Oh, faz como quiseres. Vens para o almoço? Ou jantar?
- Provavelmente, não.
- Mas quero-te em casa antes das onze.
Nem respondi. O resmungo do Cláudio disse tudo por mim.
Lá fora, estava um frio gélido. Parecia que estávamos na idade do gelo. Vesti o casaco, beijei o Afonso no rosto. Caminhámos pela rua fora sozinhos, dois vultos de preto refugiados do frio nos casacos e com as mãos nos bolsos, apenas iluminados pela luz amarela dos candeeiros que sabia a néon.
Subimos a minha rua e descemos a seguinte. Na esquina que a casa cor-de-rosa do homem da mercearia fazia com o muro da casa da Dona Rosa «do Trigo» esperava um carro negro, um Audi dos mais recentes. Abrimos a porta, entrámos para os bancos de trás. Lá dentro, vivia-se numa amena temperatura de dezoito graus, e não os dez ou onze que se encontravam na rua. Sorri ao ver o rosto do Hélio no espelho retrovisor.
- Boa noite. – disse ele, na sua voz meia esganiçada.
- Sim, realmente ainda é noite. Não tens sono?
- Há imenso tempo que quase que não durmo. Tenho muito que fazer da minha vida, não me posso dar ao luxo de perder tempo a dormir.
- Isso é parvo. – resmunguei.
Era óbvio que o café resolvia todos os problemas de concentração e falta de sono do Hélio. Mas tanto eu como ele sabíamos que não dormir era tão saudável como engolir um garfo de trinchar e uma motosserra ligada. Mas o Hélio era o Hélio. E ele não se preocupava nada (ou quase nada) com a saúde. O físico já era outra coisa, apesar de ter o rosto vermelhão e carregado de borbulhas. Relembrei ao Hélio a revolução dos maravilhosos cremes contra o acne que se havia dado já há uns anos. Ele encolheu os ombros largos, fez um som gutural qualquer e pôs o carro em marcha. A Lília e o Cláudio nunca gostaram muito que eu andasse com o Hélio de carro. Eu, pelos vistos, «tinha desejos de morte» e era «sadomasoquista». Ideias da Lília, já que o Hélio tinha a carta há dois meses apenas e gostava de velocidades. No entanto, eu não tinha medo. O pobre do rapaz estava cansado demais para fazer qualquer força excessiva que fosse no acelerador. Além de eu bem saber que o Hélio nunca na vida se atreveria a fazer um arranhão sequer no Audi do pai. Recostei-me confortavelmente nos bancos. Que sono, quase que adormecia. O Afonso começou a falar sobre qualquer coisa, não percebi bem o quê. O Hélio ia-se rindo, dando as suas opiniões de vez em quando. Eu, nem me pronunciei. Adormeci mesmo.
Acordei com um beliscão na bochecha.
- Afinal está viva. – ouvi.
- Cala-te. – disse, imperceptivelmente.
- Vá lá, Jo.
Pus-me em cima das pernas a custo. Esfreguei os olhos e dei o braço ao Afonso. O aeroporto estava cheio. Aquela voz feminina irritante que anunciava os voos fazia-se ouvir. Perguntei ao Hélio a que horas aterrava o avião do David.
- São quase cinco horas, portanto, se o voo não se atrasar, daqui a muito pouco está aí.
No entanto, o pouco do Hélio não é exactamente pouco. Segundo ele, «dois anos é pouco». Mas o avião de certeza que não levaria dois anos a chegar. Esperava eu.
Eram seis e meia quando o Hélio se inclinou sobre mim e disse que o David tinha acabado de aterrar. No seu hálito conseguia detectar o odor a café, rebuçados de limão e…o que seria aquilo? Ah, um pastel de nata. Lembrei-me que ainda não tinha tomado o pequeno-almoço. O estômago começava a ressentir-se.
- Hélio, Afonso, tenho fome.
Olharam-me piedosamente.
- Espera só que o David chegue. Depois podemos comer qualquer coisa em casa dele.
- Tudo bem.
Nesse momento, vi o David. Estava moreno, e as olheiras pareciam ter desaparecido. Não trazia os óculos, mas antes lentes de contacto, o que lhe fazia o rosto mais largo. Sorria, aflorava-lhe aos lábios um sorriso calmo e bonito, o que fazia dele um indivíduo ainda mais atraente. No entanto, naquele momento, eu estava ocupada não a ver as suas novas características, mas apenas a quedar-me feliz por ele estar de volta. A primeira coisa que fez foi abraçar-me com força, apertando-me contra o seu peito cheiroso e encostando o queixo aos meus cabelos.
- Bem-vindo.
- Obrigado.
Cumprimentou tanto o Hélio como o Afonso com um aperto de mão. Na sua maneira, demonstravam o seu mais profundo afecto.
O David, vestido à sua peculiar e distraída maneira, cheirava à Grécia, àquelas comidas estranhas que por lá se fazem. E estava particularmente feliz.
A mãe agarrou-me por um braço. Saudou-me e enfiou-me na mão um pequeno embrulho encarnado. Sorriu e deu-me umas palmadinhas nos nós dos dedos. Achei piada. Pus o embrulhinho ao bolso e não pensei mais nele. Depois daqueles momentos de intimidante melancolia e demonstrações públicas de afecto, estava na hora de voltar à normal inquietação da normalidade. (Sim, o pleonasmo foi mesmo necessário.)
- Ei! – gritei, ao ver o Afonso, o Hélio e o David a dirigirem-se para a casa de banho dos homens.
Viraram-se os três. Corri o mais que podia e saltei para as costas do David. Rimo-nos da minha recente adquirida puerilidade.
Aproximou-se a mãe do David.
- Vamos, meninos. Estou mortinha por chegar a casa e fazer-vos um monte de belas panquecas.