A Rainha está parada. No entanto, continuo a escrever, a atirar ideias para o ar e deixá-las cair no papel desorganizadamente. Aqui fica mais um dos produtos dessas divagações:
A estrada parecia cada vez mais longa. O asfalto molhado corria severamente sob os seus pés, intocado e negro como corvos, ainda tépido da passagem rasteira das rodas dos carros. Sentia o bater do coração nas têmporas, ritmado e duro, a fazer as gordas gotas de suor ressaltar na pele da testa. E o som da sua respiração ofegante, pulsando surdamente nos ouvidos, dilacerava o silêncio. As luzes da cidade ficavam cada vez mais pequenas, até se transformarem em pontos frios e intermitentes que furavam a escuridão nocturna, bruxuleando no céu roxo.
Artem Domashevich deixou o vento empurrar-lhe a corrida, embalando-o com uma velocidade espectral. Já não sentia as pernas; os músculos contraíam-se-lhe e o suor escorria-lhe pelos sulcos da pele, a qual exalava um vapor raso e cinzento. A nuvem de condensação causada pela respiração pesada bailava-lhe na frente do rosto, sendo ocasionalmente desfeita pelo movimento. Os cabelos loiros colavam-se-lhe à testa baixa e pálida, embebidos em suor líquido e escorregadio. A camisola húmida marcava-lhe os contornos dos abdominais excepcionalmente bem definidos e dos bíceps fortes e férreos. Os seus olhos, os quais, apesar de serem de um poderoso azul metálico, eram revestidos por uma camada negra que lhe trespassava a alma. Uma gota de suor escorreu-lhe pela testa e deslizou sobre a ponte do nariz ligeiramente aquilino. As suas feições pujantes e bem demarcadas enchiam-lhe o rosto de uma sensação exótica e gélida. Era um homem atraente, de forma quase magnética, sólida e desorientadoramente maciça, como um boneco de cera demasiado real.
Artem gostava de correr depois de a noite já ter caído. Encontrava na frieza nocturna algo que lhe lembrava S. Petersburgo, a sua cidade natal. Não havia luzes, não havia cidade, apenas o lento compasso noctívago que nascia no momento em que o lusco-fusco eclodia sobre as nuvens latentes. Faltava-lhe apenas o toque taciturno e branco da neve, desenhando camadas longas e finas sobre o horizonte.
A estrada continuava a estender-se até ao nó do universo, firme no berço onde tinha sido escavada. Ao fundo da noite, na dobra do céu, um quadrado luminoso deslizou sobre a sombra dos braços nus e secos das árvores. A névoa levantou-se, e um edifício alto do estilo eduardiano, bordado de varandins brancos, beijou a ponta da estrada. A luz de uma lareira crepitava através de uma das janelas do primeiro andar, recortando sombras numa parede afastada. Artem abrandou o passo, acabando por parar a uma distância confortável da casa. Reconheceu a sombra delgada de Wynn no nevoeiro quente e rósea do fogo. Foi obrigado a esboçar um sorriso. Para além de uma mulher bonita, Wynn era intrigante. Detentora de um rosto alto e inteligente, faces brancas e braços imaculados, um pescoço comprido e elegante, a bailarina agitava-se entre tules e sedas como se disso dependesse o resto inexistente do presente. A sua aparência frágil escondia uma poderosa força física e psicológica, salpicada de Tchaikovsky e Prokofiev, de frases soltas de ballets perdidos nos recantos da sua vida. E desapareceu na névoa fogosa das janelas.
Artem fechou os olhos e imaginou como seria uma noite com sol.