Jacqueline passou o indicador na linha da pálpebra para retirar uma minúscula poeira de eyeliner. Passou a mão direita, gentilmente, por cima da chama da vela, sentindo a calidez que provinha do pequeno feixe luminoso. Este reflectiu-se nos seus olhos e deu-lhes um brilho surreal.
- Sabes, Violet, eu, no fundo, sabia que o Paul Carter ia mandar alguém para me matar. Eu sabia dos assaltos dele, dos crimes dele, e ele não me ia deixar viver enquanto eu soubesse essas coisas. No dia em que supostamente morri, a Cornélia estava em minha casa. Ela sabia de tudo, tal como a Leah. Na noite anterior, eu tinha recebido um bilhete do Carter, a pedir-me para ir ter com ele ao sítio onde ele costumava ter as reuniões com os capangas, na Avenue Noire. Dizia que queria resolver as coisas. – sorriu ironicamente – Pois, claro! Eu nunca fui idiota, muito menos crente, e percebi que ele me ia matar, ou pelo menos mandar alguém fazê-lo.
Violet engoliu em seco.
- Mas não matou, tu estás aqui.
Jacqueline levantou o olhar e cruzou as pernas. O seu sapato de verniz refulgiu à luz da vela.
- Não foi a mim que ele matou.
Violet Simmons ficou, por um instante, a pensar no silêncio e a ver as palavras desaparecer. Chamou à memória o dia em que tinham todos estado junto à campa de Jacqueline, quando o único som presente era o de Jesse a expelir o fumo do cigarro pela boca. Jesse. Mas, sendo verdade o que Jackie dizia, tinham prestado respeitos a alguém que não era ela, a alguém que estava enterrado com o nome errado; alguém desaparecido nas sombras.
- Cornélia…foi a Cornélia que morreu.
- Sim. – Jacqueline acendeu um cigarro pequeno e expulsou o fumo pelo nariz – Foi ela. A Cornélia queria ajudar-me, ir por mim ao encontro com o Carter. Como é óbvio, eu não queria deixá-la fazê-lo, mas ela sempre foi a mais teimosa de nós as três, e acabou por ir, mesmo sem o meu consentimento. Pintou o cabelo de preto, mascarou-se de mim. Levou a minha carteira e as minhas roupas. Na verdade, estava extremamente parecida comigo. Só quem a visse de muito perto perceberia que não era, realmente, eu.
- Então foi assim que o Raoul não percebeu que o corpo era a Cornélia?
- Exacto. Para além disso, ele estava muito alterado, o que não proporciona as melhores condições para uma visão exacta.
- E depois, o que fizeste durante os dois anos seguintes? Porque é que não voltaste para casa?
Jacqueline não respondeu imediatamente. Parecia perdida, desligada, envolta em recordações. Imóvel como uma estátua, começou a entreabrir os lábios, e destes voaram lentamente palavras baixas e tristes.
- Não consegui. Foi mais forte que eu. Eu não era capaz de enfrentar a minha irmã, de enfrentar o Raoul. Ninguém me ia compreender, ninguém ia perceber a minha dor.
- Então preferiste causar dor aos outros?! Desculpa, Jacqueline, mas isto é patético.
- Patético?! Experimenta a minha situação, põe-te no meu lugar! A minha melhor amiga tinha sacrificado a vida dela por minha causa, por uma arrogância minha. A Cornélia morreu porque eu não fui corajosa e ousada o suficiente! Achas que eu podia voltar para casa e sujeitar-me à rejeição de todos? Fiquei dois anos a viver como incógnita num abrigo para artistas. Lentamente, fui recuperando, aprendendo a viver com a culpa. Ela, com o tempo, tornou-se mais leve. Em Dezembro de 2006, decidi voltar. Arrumei as minhas coisas, despedi-me de quem tinha ajudado, e voltei ao Le Château.
- E não te reconheceram? – perguntou Violet, franzindo o sobrolho.
- Não. – respondeu a outra, placidamente – Por incrível que pareça, não. A verdade é que eu tinha crescido e mudado muito, inclusivamente cortado o cabelo. Já não era a mesma miúda pateta, era uma mulher. Quando cheguei, perguntei pelo Raoul. A reposta que me deram foi quase automática, lembro-me muito bem. «O Raoul Lewis já não estuda aqui».
- Mas porque voltaste nesse Dezembro e não noutra altura qualquer?
- Por causa do Concurso. Eu sabia que iam estar todos reunidos, e queria ver-vos. Mas isso acabou por ser a minha perdição. Chegou o primeiro dia, e eu escondi-me para vos ver. Esse foi o meu erro. Vi-o, com ela. Estavam felizes. – as palavras dela eram um misto de fumo e voz – Um a um, reparei que vocês estavam em Paris como se nada ali se tivesse passado. Mas isso nem foi o que mais me magoou. Quando o Danny começou a investigar a minha alegada morte, o Carter apercebeu-se. Eu soube que era apenas uma questão de tempo até ele decidir fazer-vos aquilo que tentou fazer-me a mim. Deixei-vos pistas, provas. Mesmo assim, vocês não se aperceberam que eu estava viva. Cheguei a chamar por vocês, no cemitério, mas todos pensaram que era ilusão. Fiquei destroçada, destruída. Nunca pensei que vocês, especialmente o Raoul, me fossem esquecer tão depressa. Durante os três anos seguintes, quis vingança. Quis que vocês passassem pela mesma dor do esquecimento. Planeei tudo, todos os pormenores. Eu sabia que o Raoul vos ia chamar mal eu desse sinais de vida. E assim foi.
Violet abanou a cabeça, tristemente.
- Jacqueline, tu dizes que fomos egoístas, que te deixamos na escuridão e na solidão, mas tu estás a fazer-nos o mesmo. Estás a tornar-te naquilo que mais odeias.
- Ele trocou-me, Violet! Ele substituiu-me, mesmo depois de me ter prometido que era para sempre! Isso a mim soa-me a mentira.
- Jacqueline…
Ela levantou-se, e a sua raiva transformou-se em fatal seriedade. Os seus olhos deixaram de refulgir, adoptando um brilho opaco e uniforme.
- Já chega, Violet. Está na hora de dizer adeus.