- Posso entrar?
Violet Simmons, envolta num sobretudo cor de amêndoa, observava-o do lado de fora, a ser fustigada pelas luzes do corredor. Por momentos, Jesse deixou-se ficar encandeado pela gentil claridade que ela conseguia espalhar nas suas redondezas. Tinha o cabelo despenteado em selvagens e largos caracóis, os quais se lançavam com avidez para cima do rosto dourado.
- Jesse? Estás a ouvir? – disse ela, ligeiramente mais alto, mas ainda com o mesmo toque aveludado.
- Desculpa. Sim, entra, por favor.
Afastou-se para a deixar entrar, e o magnetismo da sua passagem quase que o atirou para trás da porta. Avançou primeiro a passos largos, os quais foram diminuindo de comprimento e ritmo. Parou no centro do quarto, entre a cama e a cómoda, a observar o compartimento.
- Isto está escuro como breu.
Ele sorriu reflexivamente.
- Ter fotofobia é terrível.
Ela olhou-o com o arrependimento patente nas feições redondas.
- Tens razão, desculpa. Já não me lembrava.
Ele disse que não havia problema, reparando interiormente que não conseguia deixar de sorrir na presença dela. Pediu-lhe que se sentasse, e ela tomou lugar no cadeirão de braços perto da varanda. Após dois agonizantes minutos de silêncio, Violet tomou a palavra.
- Já sabias, Jesse? – perguntou ela, num tom de voz que trazia a sensação de flores a murchar sobre uma lápide.
- De quê?
- Que a Jacqueline estava viva.
- Não. – respondeu – Mas também não fiquei propriamente surpreendido.
- Estás a brincar?
- Achas que brincava com isto? Quando recebi a carta do Raoul, percebi imediatamente que estava alguma coisa errada, muito errada, até. – cruzou as pernas sobre a colcha da cama – Depois de a ler, não tive dúvidas de que aquilo que ele falava tinha alguma coisa a ver com aquele Inverno. Tu conheces o Raoul tão bem como eu, e sabes que ele não é pessoa de entrar em paranóias ou de dar numa de dramático. Ele tem os pés bem assentes na terra, e para ter entrado naquele estado de desespero, alguma coisa mesmo grave tinha de se ter passado. E o que é que mexe com o Raoul mais do que qualquer outra coisa? A Jacqueline.
Violet permitiu-se a um instante de pausa, até as palavras de Jesse e o seu sotaque deixarem de pairar no quarto.
- Eu nem imagino como a Donna deve estar. – mordeu o lábio inferior com pouca força e largou-o – Saber que a antiga noiva do noivo dela ressuscitou dos mortos deixa qualquer um com a cara à banda.
Jesse soltou uma gargalhada cruel, apoiando as palmas das mãos nos joelhos.
- Ela não ressuscitou dos mortos, Violet.
- Para mim, sim. Quer dizer, ainda não temos a certeza absoluta de que ela está, realmente, viva.
- Tens alguma dúvida?! – ele fixou os olhos dela com os seus – Eu não! A reacção da Céline e do Alex falou mais alto. Ela não tinha ficado naquele pobre estado se não tivesse mesmo visto a irmã.
Violet levantou-se, tirou o sobretudo e encostou-se ao vidro da janela, cruzando uma perna atrás da outra num movimento elegante de garça. Ficou séria, mas os olhos cor de caramelo transportavam uma certa doçura.
- Lembras-te o que nevava, aquele Inverno, Jesse? Lembras-te da Avenida do Triunfo totalmente branca?
Ele, cabisbaixo, respondeu que sim. Lembrava-se perfeitamente, a imagem continuava fresca na sua memória. Violet passou a mão pelo rosto.
- Queria voltar a esse dia.
Nesse momento, ele quis abraçá-la. Era a primeira vez que tal impulso o dominava por completo, em toda a sua amplitude. No entanto, manteve-se no mesmo lugar, cingindo-se a observá-la e a recordar como era quando sentia o calor dela entre os seus braços.
Lá fora, a noite estava limpa e fresca, típica do Outono, com a aragem semi-gélida a traçar a escuridão num laivo de frio. Bruxuleavam sobre os edifícios pequenas luzes cor-de-laranja e prateadas que pareciam velas a resistir ao vento forte. No céu, não havia estrelas, apenas farripas róseas de nuvens desintegradas.
Violet esfregou as mãos uma na outra, e o seu bafo quente regelou na superfície do vidro.
- Mas o que realmente me incomoda é outra coisa.
Jesse levantou-se, cruzando os braços sobre o forte peito desprovido de melanina, pálido de morte.
- O que é, então?
Ela fez uma pausa, respirou, e falou-lhe como se fosse proibido:
- Se a Jacqueline não morreu, então quem morreu no lugar dela?