Acordei com a sensação de que tinha dormido demais. A cama era incrivelmente confortável, os lençóis macios e cheirosos. Virei-me no leito várias vezes, apenas para ter a sensação do tecido a roçar-me nos braços nus e nas pernas. Parei por um momento, a olhar o tecto da cama de dossel. A noite passada estava surpreendentemente fresca na minha memória, e o sabor dele mantinha-se nos meus lábios.
A luz matinal, tingida de ouro, entrava corajosamente pela janela em largos e numerosos feixes radiosos, nos quais brilhavam grãos de pó, voando no ar morno do quarto. Chegava-me aos ouvidos o barulho do mar, a ronronar sensualmente. O céu era uma incrível mancha turquesa, que me lembrava o papel de embrulho que eu havia usado para empacotar a prenda de Natal do David. Sentei-me na cama, abri as cortinas com ambas as mãos e icei-me teatralmente para fora da cama. Em cima de um dos cadeirões eu conseguia ver uma muda de roupa que, obviamente, não era minha. Sobre a pequena torre de vestuário, estava pousado um diminuto papel cor de amêndoa, escrito na mesma caligrafia perfeitamente desenhada que eu reconhecia do bilhete que tinha recebido anteriormente.
Joana,
Deixei-te uma muda de roupa lavada. Deve servir-te. Se não for o caso, fala com a Núria, tenho a certeza que ela te pode dar uma ajuda com isso.
E bom dia.
- Anjo
Fechei-o lentamente, sorrindo.
O quarto encontrava-se mergulhado no mais absoluto silêncio. Quando desci as escadas, ainda descalça, encontrei a Núria sentada à mesa da cozinha, a mexer em círculos uma colher de prata dentro de uma caneca cheia de um cheiroso líquido ambarino. Quando reparou na minha presença, levantou a cabeça e sorriu, saudando-me com um melodioso Bom Dia.
- O António? – perguntei, tentando disfarçar uma certa tremura na voz.
- Está no estúdio, ali à esquerda.
- Obrigada.
Ouvi imediatamente o som do piano. Mais uma vez, Rachmaninov enchia o ambiente num ritmo gradual e meloso, numa mistura de graves que me causou um arrepio na espinha. Abri a porta, e a luz aventurou-se no negrume do estúdio. Lá estava o Anjo, em frente ao seu Fazioli de concerto, com as brancas mãos a deslizar no teclado, exactamente como da primeira vez que eu o vira. Num rápido movimento felino, acercou-se de mim, passou-me o indicador esguio pela mandíbula, e, extremamente baixo, disse:
- Afinal, as roupas serviram-te.
Ri-me, tão verdadeira e sinceramente que me surpreendi a mim própria. Quando ele se voltou a sentar ao piano e eu me inclinei sobre a tampa, para sentir a revibração das cordas na ponta dos dedos, reparei de novo nos fogosos olhos azuis, na fresta da porta, a observarem-nos. Eu sabia, sempre soube, a quem pertenciam. Fixei-os com os meus, numa troca de olhares tão intensa que podia doer ao observador casual. Passado uns segundos, desapareceram. O coração caiu-me aos pés, e ficou um buraco gelado no meu peito.
Ouvi o Anjo falar, harmoniosamente, mas já com um pingo mínimo de tristeza.
- Quando ele me quiser enfrentar, vou estar à espera dele.
FIM
***
E este é o fim de Brisa Marítima.
Aproveito para anunciar que vou lançar uma nova história, num formato ligeiramente diferente. A história chama-se «Xadrez», e nela recupero personagens que alguns de vocês podem reconhecer, pois pertencem a uma história antiga da minha autoria. Deixo-vos a sinopse, para aguçar a curiosidade:
Daniel King, antigo aluno do Instituto Hills, muda-se para Nova Iorque com o irmão para estudar na Juilliard, acompanhando o seu melhor amigo, Jesse Stone.
Violet Simmons, jovem virtuosa do violino, vive com a mãe e o padrasto em Chicago, de modo a poder continuar a estudar com Bill Owen, o seu antigo professor.
Edward Cole, em Kiev, prepara uma série de concertos pela Europa, após sagrar-se o mais jovem vencedor de sempre do concurso Chopin.
Estes quatro músicos, separados três anos antes pelas suas escolhas de futuro, são supreendidos por uma carta de Paris, que os leva a reencontrarem-se no local onde estiveram juntos pela última vez. Deparam-se com uma história do passado que julgavam já ter sido esquecida e que pode mudar o curso das suas vidas para sempre.